quinta-feira, 19 de setembro de 2013

OS TICINCO
Ainda não fiz um texto sobre a Dida, irmã de meu avô materno! A Dida como protagonista que foi de toda a minha formação, com seu afeto e proteção, junto à sabedoria e delicadeza do pai para orientar. Nos textos que já escrevi ela sempre tem estado presente, mas como uma lufada de ar num dia de verão e não como o próprio verão que foi.
Se chamava Emerita e apesar de sua solteirice juramentada nasceu para ser mãe e abraçou a maternidade com a competência de alguém orientado por fios divinos, em escolhas espirituais que não se explica mas, por vezes, se compreende em pessoas especiais. Nasceu em 1901 e era a filha mais moça de sua família, raspa-de-tacho como se dizia então, e tratava seus irmãos com a deferência destinada a senhores mais velhos. Ajudou a criar minha mãe e seus irmãos. E eram tão apegados que - contava sempre - quando a mãe casou com o pai, assustada com a perspectiva de um sexo misterioso, queria que a Dida a acompanhasse na lua-de-mel. E quando nasceu minha irmã, um ano depois, foi ela que a batizou, de Emerita transformando-se em Dinda e de Dinda em Dida, quase instantaneamente. E foi como Dida, na família e na cidade inteira, que se perpetuou.
Quando a mãe começou a sentir que a vida se esvaía, confiou seus quatro filhos a ela. A mãe partiu e a Dida, com o coração em pedaços, abafou seus soluços para nos compensar. Mudou-se com sua malinha de lona e a máquina de costura e passou a morar conosco, dormindo comigo, que era muito pequena e muito assustada. A demonstração do carinho entre todos nós sempre foi muito fácil e isso devemos àqueles braços que nos abrigavam o tempo todo, provando que o afeto é a mola-propulsora das boas intenções. Cuidou de nossas roupas, nosso alimento, nossas amizades. Brincava, quando fazíamos alguma peraltice: "Deus não dá filhos e o diabo dá sobrinhos!" Quando começamos a partir para nossas andanças, fazia potes de roscas que chamava de "mariquitas" e enchia as despensas de nossas casas.
Usou o mesmo corte de cabelo pela vida afora, fazia suas roupas - e as nossas também - com a simplicidade que a época difícil exigia, mas tinha uma vaidade inviolável: nunca falou sua idade! A cada aniversário respondia invariavelmente que tinha "ticinco". E os ticinco repetiram-se vida afora, sem que pudéssemos ver seus documentos e comprovar o tamanho dos ticinco. Tinha poucos cabelos brancos e a idade era indecifrável. Só ficamos sabendo quando aposentou-se compulsoriamente, aos 70 anos, e desfez-se o mistério.
Atravessou uma vida longa, 90 anos, perdidos os últimos para o Alzheimer. Mas na maior parte de sua caminhada não viveu para si própria em nenhum momento. Viveu para os filhos que lhe foram surgindo pelas perdas e pelas necessidades e foi uma das melhores mães que conheci. Quando alguém na família, primos, tios, irmãos, faz aniversário, muitas vezes o ticinco é lembrado, trazendo de volta a Dida, como que por magia, num comovente vôo espiritual em nosso mais profundo céu interior.

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