Num dia iluminado pelos sonhos realizados, ganhei um sapato de verniz. Era vermelho, como que encerado, e brilhava como um sol de meio-dia. E como era duro! A espessa tinta sobre o couro deixava o pé com a sofrível missão de nos conduzir em passeios importantes, com um pouco mais de elegância feminina, quase inexistente nas aventuras do dia-a-dia. Ganhei o sapato de verniz, era domingo e, de mãos dadas com o pai, saímos a inaugurá-lo pela cidade. Meu sorriso brilhava mais que o verniz e, a cada conhecido que encontrávamos, tratava de tirar alguma poeira do pé incandescente ou o coçava, na ilusão de disfarce.
Já estávamos a várias quadras da nossa casa e, mesmo com o sacrifício das bolhas que já se formavam, eu estava feliz. Tinha uns 8 anos, era magra como um palito e saltitava olhando pra todos os lados atrás de conhecidos pra quem exibir meu presente. A cidade estava trocando sua iluminação pública e tinham sido feitos, na beira das calçadas, buracos de mais de um metro de cumprimento e estreitos para encaixe dos novos postes. Eu vinha tão distraída que caí direto num dos buracos. Os braços abertos sobraram do lado de fora, o que me salvou, mas fiquei trancada no buraco por algum tempo, até que o pai, com a ajuda de passantes que alargaram a borda, conseguisse me esfolar até a calçada. Mas oh, tragédia! Na subida, enquanto me puxavam, caiu um dos sapatos no buraco. E não houve jeito de resgatá-lo naquele momento. Se até então eu vinha resistindo heroicamente, nesse momento abri o maior bocão de todos os tempos.
Voltei pra casa triste figura, esfolada, imunda, com um pé só de sapato, cheia de bolhas calçadas e descalçadas e num choro de ensurdecer. O pai, como sempre apaziguador, prometeu-me ir no outro dia antes das 7 da manhã, quando os homens iriam colocar os postes. E as 10 pras 7 estávamos lá! Para meus olhos, o inacessível sapato vermelho brilhava no buraco, como se as luzes da cidade já estivessem todas ligadas. E enquanto esperava, acocada na borda, em fiel vigília, não sabia ainda que estava aprendendo a não desistir dos sonhos, mesmo que as esquinas nos levem a caminhos obscuros. Estava aprendendo que nas mãos de quem nos ama brilha um farol a nos descrever os rumos disponíveis e como atravessá-los em paz.
Ali, consciente apenas de que ia unir novamente os pés dos meus sapatos de verniz, esperei os homens chegarem com as ferramentas apropriadas e pescarem, sem dificuldades, o solitário e meio embarreado pedaço do meu sonho quase desfeito.
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