quinta-feira, 12 de setembro de 2013

O OVO DA SERPENTE
Quando eu tinha uns 8 anos, entre brincadeiras com os gatos, bonecas de vestir (de papel, quem lembra?) e carrinhos do mano, ouço uma conversa de que a Casa da Criança de Cachoeira estava pedindo donativos. Fundada em 44, era um orfanato mantido pelas Irmãs do Sagrado Coração de Jesus, com professores cedidos pelo município. Pois ao ouvir os planos de mandar roupas e brinquedos nossos pras crianças, fiquei pensando que ninguém havia lembrado de mandar balas, meu mais maravilhoso sonho de consumo, e resolvi ajudar. Meu único bem era a coleção de revistas em quadrinhos (Luluzinha, Mandrake, Capitão Marvel...) Resolvi vendê-las para comprar as ditas balas. Minha casa tinha um degrauzinho de uns cinco centímetros, no alicerce, que se prestava para a base onde as revistas ficariam em pé. Um prego em cada ponta da parede e um cordão de fora a fora completavam a banca. Acho que devia estar em férias, pois passei o dia ali, e vi minhas preciosas revistas irem embora impiedosamente, ao menor afago, ao mais ímpio olhar de sedução, sem um esvoaçar de folhas sequer... Penso que deviam estar custando bem menos do que valiam, pois o movimento foi intenso e logo logo aquela banca de uns dez metros, com revistas de início amontoadas, foi ficando vazia. O ponto alto foi quando o prefeito da época, Moacyr da Cunha Rösing, veio escolher suas revistas, com a importância de um freguês em uma joalheria.
Computados os ganhos, deu pra comprar um sacão de balas, acho que de cinco, dez quilos, não lembro bem. E ele era tão grande, tão tentador para meus olhos infantis, que não resisti a furar uma pontinha e pegar algumas balas. Pensava, insidiosamente, que merecia aquelas balas, pois havia cedido minhas preciosas revistas. Era o espírito da propina que se insinuava em minhas ações diárias, sem que eu entendesse, no momento em que tive o poder sobre aquelas balas e aquelas crianças. Claro que os adultos perceberam o furo e a lição de moral correu solta. O pai, com sua sabedoria, falou-me em integridade e desprendimento, sem nunca deixar que minha vergonha suplantasse o fato de que a intenção era boa. No outro dia fomos levar o presente até a Casa da Criança e deliciei-me ao vê-los me rodear, enquanto distribuía as balas. Por um instante mágico fui um pouco mãe daquelas mãos estendidas. Tudo o mais perdeu a importância a não ser os apaziguados sorrisos porque, ao me fazer devolver as balas, falando no verdadeiro sentido da generosidade, o pai estava destruindo para sempre, em seu ninho mais obscuro, o ovo da serpente. 

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