sábado, 31 de agosto de 2013

Tenta descansar se conseguires
Tenta erguer as pernas em almofadas macias
enquanto tudo se desmorona ao redor

Não dá!

Muitas vezes a poesia
não é o instrumento
É chamado mais que um coração
para a reconstrução
São precisos mãos e pés e pernas e sangue
e uma energia que não sei de onde
além daquela que te fez respirar
e pensar
e sentir
até agora

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

O medo das sombras
faz de nossos próprios contornos
um monstro desconhecido

Vou te dizer que é de chuva
que ele está molhado
que foi o sono que deixou
meu olho inchado

Vou te dizer que é de família
a palidez da pele
e que os quilos a menos
são tratos à Gisele

Vou te dizer que as rugas
são todas de expressão
e que os brancos que tomaram conta
são como sempre a mais livre opção 

Vou te dizer que planto
e me abasteço ao sol
e que me encanto
como nunca fiz

Vou te dizer que em paz eu canto
e sonegar todas as duras penas
para que uma noite apenas
seja de alívio o manto
e possas dormir feliz

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Não exijas 
de ti mesmo
a sensibilidade para captar presenças inauditas

Antes talvez
a capacidade para captar ausências
porque delas se absorve
o que realmente permanece

quarta-feira, 28 de agosto de 2013


O MUNDO É UM MOINHO
Deixar nossa casa grande e confortável em Cachoeira, para uma aventura distante, num chalezinho mais simples e sem grandes confortos, pode, hoje, parecer inconcebível. Mas era tão falada, tão decantada, através dos meses de inverno, que quase a vivíamos desde então. Em Cachoeira, colégio, pai e Dida trabalhando, manos conspirando sua juventude em quartos fechados, transformavam o ano num tedioso período de preparação. E então partíamos para a praia, onde os quartos eram mais compartilhados, as refeições feitas em conjunto e a liberdade de ir e vir, numa época de poucos perigos, era muito maior. Um dos meus maiores encantos era a adoção das diversas espécies que povoam nossas praias, lagartixas, sapos e seus girinos, peixes. Num dia de garimpo pelo arroio, que dá nome à praia e passava em frente à nossa casa, encontrei um sapo, o maior que já vi e compadeci-me dele pois - pasmem - tinha lábio leporino, segundo explicações do pai, pois pra mim ele tinha era um enorme rasgo na boca. Levei-o pra casa, andava com ele no colo e coloquei-lhe o nome de Quacolino (minha criatividade pra nomes era inigualável: Tixinha para a lagartixa e Rabudo pra o girino, além do Quacolino, claro). E comecei um sangrento período de caça a insetos - moscas, formigas, mosquitos, para prover o sustento de meu novo filho. Mas o Quacolino, mesmo tendo se acostumado comigo e a casa, emagrecia a olhos vistos. De enorme sapo que chegou, sem seu paraíso natural e sem sua liberdade, murchou, diminuiu de tamanho até e já nem falava mais "Quac", com seu lábio leporino. O pai, vendo minha agonia e a agonia do bichinho, principalmente, sentou-me em seu colo e deu-me a primeira lição de desapego. A primeira lição de que amar é deixar livre e que nada, nada nos compensa quando o outro, aprisionado, não é feliz. Muito triste, com o coração na mão, levei o Quacolino de volta ao arroio. Deixei-o lá, certa de que estava fazendo o melhor por ele, porque o pai, ao colocar a situação, sonegou-me a informação de que ele poderia não sobreviver com aquela boca e debilitado como estava, na guerra do mais forte. Deixei-o lá, já contente porque o tinha salvo, sem saber que o mundo dos sapos também é um moinho.

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Se pelas ruas da cidade
eu também parir meus feitos
posso tumultuar o trânsito
por algumas horas

Uma vida que não foi emprestada
de ninguém
de nenhum modismo
ou lei
ou preocupação alheia
mas com tanto sangue
que entope os ralos da cidade
e com tanta luta 
que movimenta carros e rostos 
para além desse caos interior

Posso parir meus feitos
duas três vezes
e não vão faltar esquinas e desvios
em que tentem estancar a voz que nasce
Mas a poesia de causas e efeitos
que se avoluma sobre a cidade
nasce poderosa
como uma tempestade
E repentinamente
se estanca e vibra
como um luminoso dia de verão


segunda-feira, 26 de agosto de 2013

A BANDEIRA
Dos anais de minha infância, as mais ricas memórias vêm dos dois meses em Arroio Teixeira, todo verão, onde tínhamos casa. Não acompanhei a compra e transformação, de meras quatro paredes, numa casa que abrigasse a família, que crescia entusiasticamente. Divisão de quartos, construção de camas, prateleiras com cortinas, mesas, bancos, tudo feito em casa, com a sabedoria gerada pela realização de um sonho. Contam-me que, como nasci em outubro e cheguei à casa aos três meses, foi-me feito um berço de um caixote de madeira, forrado de tecido, com babados. Buscavam água do mar em um balde e a deixavam esquentar ao sol, para meu banho diário. O que me lembro era a viagem interminável, com baldeação em Porto Alegre, de Cachoeira até a praia, pai, mãe, Dida, meus três irmãos e eu, a menorzinha, carregando claro que a menor sacola, mas contribuindo com o frete de toda a tralha que precisaríamos pelos dois meses que viriam. Naquele tempo não havia grande comércio em Arroio Teixeira. Comíamos de vianda, de um hotel próximo, e havia um armazém nas redondezas de nossa casa. Frutas vinham vender em casa, de cento. Quando chegávamos, era preciso suportar três dias sem luz, até que a companhia de energia viesse ligar os fios. A maior invenção da época, depois da água encanada, foi uma geringonça, pai do disjuntor, que ligava e desligava a luz, no início e no fim do veraneio. A água era outro parto. Já fui uma sortuda de pegar banheiro construído, mas a água era de poço e tínhamos de encher a caixa através de bombeadas vigorosas. O pai, homem sábio, fez um cálculo perfeito de quantas precisaria para termos a água do dia. Dividiu por faixas de idade - eu tinha de dar trinta! - e assim foi funcionando, até que cresci um pouco e meus irmãos deram em grito pela equiparação de funções, já que eu comia tanto ou mais que os outros. Essa foi a primeira manifestação política de que tenho notícia! Mas o que eu mais gostava, a despeito dos três dias sem luz, era a pintura da casa, na chegada, com cal e trincha, que naquele tempo se chamava brocha, sem termos vergonha de comprar no comércio. O trabalho era dividido segundo a capacitação de cada um: eu pintava o rodapé, meus irmãos por volta das janelas e os adultos se ocupavam, é claro, do resto das paredes. Lembro-me de um dia, em que estava ocupada em meu setor, e fui atingida por um prego em pé, provavelmente deixado cair pelo pai, que era o mais alto e o mais distraído. O prego fixou-se em minha cabeça, como uma bandeira, e marcou-me para sempre, se não pela gravidade do furo, mas pelo amor às coisas partilhadas, pela criatividade em inventar, de um nada, aquilo de que se precisa e pela emoção que o cheiro do mar, até hoje, me proporciona.

domingo, 25 de agosto de 2013


Um dia, num poema, escrevi "ninguém avisou que havia uma curva no meio dos meus planos...". A desconstrução, quando sabemos que a vida dobrou esquinas, é absolutamente necessária, porque muda a posição do vento, a direção do sol, o movimento das ruas. E é essa desconstrução que abre espaço para um ser novo, adaptado à nova situação, e que pode ser ainda melhor que o ser de antes. Sobre isso nos fala Paulo Motta e sobre isso nos fala Gilnei Lima. Dois textos para reflexão. No contraponto, Val e o amor, Val e o lirismo de sua palavra. Que nossas pérolas possam iluminar esse domingo chuvoso.

De Val Saab
eu te procuro em todos os lugares
em todas as ruas e avenidas,
mas você não está.

eu te procuro em todas as praças,
bancos e sacadas,
mas você não está.

eu te procuro pelo céu,
pelo sol, pelas matas,
mas você não está.

eu te procuro pelos meus olhos,
na minha boca, no meu coração,
então, eu te encontro.
é onde você está!


De Gilnei Lima
A TRANSPARÊNCIA DA JANELA
DE VIDROS OPACOS.
Meu momento pessoal tem sido como as cotações das bolsas de valores e suas oscilações. São coisas que me incomodam, mas eu enfrento bem. Eu vim ao mundo com uma peça faltando. Não implantaram em mim o chip da inveja. Nem sei como é sentir isso, sinceramente. Ciúmes, claro, já senti sim. Mas é bem diferente. Eu tenho por algumas pessoas uma real e verdadeira admiração. Comigo, ao contrário, pouca gente me conhece, até porque estive longe do cenário das comunicações e do jornalismo por um tempo. Assim, quando resolvi assumir minhas atividades voltadas a minha verdadeira vocação e paixão, venho sentindo algumas escancaradas e outras veladas restrições ao meu trabalho, talvez até minha capacidade ou competência. Tendo ficar incólume a isso, mas nem sempre é fácil. Eu não sobrevivo dessa atividade, mas não vivo só de aplausos, preciso de trabalho real e sério, principalmente respeito, no mínimo na mesma medida que dou a todos os bons profissionais e outros nem tanto, mas meu respeito é linear. Cada um com seu nível de erudição, intelecto e conteúdo. Vou falar novamente em Paulo Motta. Eu tenho amizade e carinho verdadeiros por este grande ser humano. Eu não sei se a quantidade de coisas boas e ruins que ele aprontou na vida estão em equilíbrio, ou se a balança pendular cede mais à um lado do que a outro. Caberá em outro tempo e em outra instancia tal avaliação. Só sei que tem me valido de exemplar modelo de vida e de postura, pois em todas as circunstancias que esse grande homem tem vivido, nunca há momento que lhe permita emitir uma queixa, quando muito um grunhido de dor no quadril, uma lágrima por conta da síndrome de Harada, que lhe exige permanente uso de um colírio à base de corticoides, o que lhe deixou com as feições do Fofão e cabelo de plantação de algodão. Ser Paulo Motta não deve ser nada fácil. Uma pessoa com alto grau de intelecto, privado de mobilidade até que lhe seja implantada a prótese de silicone mamária, digo, de aço carbono na cabeça do fêmur, encaixada na bacia de louça sanitária, para que possa voltar a ter autonomia, como gente normal. Coisa que será impossível: Ser o que nunca foi. Mas também é preciso entender e louvar o fato de que um homem que encontra espaço para fazer com que todos se alegrem com um repertório de esbugalhos fraseológicos, diametralmente encaixados na inexatidão do contexto de coisa alguma, mas que sempre fará todo o sentido, considerando toda a solidão oculta, a dor silenciosa, que apenas é suavizada pelo alimento da maior de todas as energias: O sorriso de quem o lê anonimamente e a ESPERANÇA de que tudo sempre dá certo no final das contas.


De Paulo Motta

Conversava, hoje, com a Maria Verônica Marchiori Ahrends, um pouco sobre como é trabalhar a cabeça na minha situação. Lembrei de algo que escrevi sobre o aprendizado que está sendo pra mim essa série de restrições físicas que, temporariamente, atravesso. Estou aprendendo a desconstruir e reconstruir. Desconstruir não é destruir o que quer que seja. É mais ou menos como desmontar, delicadamente, muitas coisas e remontá-las de acordo com esse novo momento. Se não fizer isso, não conseguirei ir adiante, seja como eu estiver, fisicamente. Minha saúde física dependerá, diretamente, de minha saúde mental. E essa desconstrução, digamos assim, envolve limites e convicção de que eu não poderei mais ser o que fui; é simples, mas eu preciso me reconquistar: continuar sendo meu amigo como sempre fui sem me importar se estou mais ou menos gordo, mais ou menos careca, mais ou menos ágil, com ou sem bolsa de colostomia. Isso não é resignação, não senhor! É aceitação a partir do que é real e ponto. É uma reconstrução, um recomeço. Quando essa chapeação terminar, vamos ver o que ficou melhor e, depois, damos uma boa olhada no que não deu pra consertar. Me parece razoável, hein? Aí vou fazer pilates! Quando ouvi essa palavra achei que fosse o Pontes Pilates, aquele carinha que lavou as mãos na água benta da Capela Cistina e mandou crucificar Barrabás! Deixa pra lá o Pôncio Pilatos, ó herege! A plantonista Chun-Li carinha de desenho mangá me traz alguns comprimidos e um, esquisitinho, parecia uma pequenina ogiva nuclear, achei que fosse um supositório, mas não era, ufa! Era via oral e não anal, para entrar nos anais da minha trepidante tramitante vida médico-hospitalar. Acho que estão fazendo testes comigo, tive certeza quando passei na frente do espelho, no escuro, e estava com um alarmante brilho verde-kryptonita! A Chun-Li se retirou sorrindo como se levada, suavemente, pela brisa da noite. Isso aqui está ficando meio sobrenatural, só falta o Edison Lobão com seus caninos pontiagudos e a capa negra a cobrir-lhe o corpo esquálido e a Ideli Salvatti oferecendo cafezinho! Tiau pra vocês, gurizada medonha!

sábado, 24 de agosto de 2013

Essa chuva miúda que me cala os ossos
não me cala a voz que canta

Essa chuva miúda
é um instrumento de desafogo
como chorasse as lágrimas do mundo
e preciso escrevê-las e escrevê-las
para que germinem a terra 
de meu ventre poético

Choram por mim as nuvens
para que eu tenha a calma
para absorver esse incansável pranto
e cantar
aliviada como um grão

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Vivemos altos e baixos até aqui
Fomos estrada e pó
Fomos todas as nuances
entre a luz e a escuridão
como se quiséssemos ver para crer
que a solidão é possível
Que a exaltação é possível

E crendo 
compreendemos muito mais 
do que está visível
do que está perceptível
a nossas mentes concretas
E começamos a atravessar nossos dias
sem desejos além dos milagres
que se apresentam
Apreendendo 
como um delicado véu então
tudo o que está por trás das transparências
porque lá está o real

E de repente
mesmo sem ainda entender 
de onde vem tanta riqueza de cores
somos como o arco-íris 
o arco-íris depois da chuva

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Comandos em ação!

Fizeram de bobo o esperto
e de esperto o abobado

Mas não faz mal...

A verdade há de chegar de óculos
para atingir cada um
com a palavra que falta
impedindo que a mentira
com seu brilho sedutor
encontre espaços carentes
para construir seu ninho

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Rir de si mesmo
é a antecipação
da qual temos amplo domínio
de um sarcasmo anunciado

Um ataque e um perdão
contidos na mesma piada

Uma artimanha do ego
no caminho da sobrevivência 

terça-feira, 20 de agosto de 2013

O SEU LÉO
Minha infância em Cachoeira ou em Arroio Teixeira, onde passávamos as férias, é povoada de feitos improváveis. Meu pai, um erudito, professor de Latim e Português, era extremamente distraído e eu, dada a "surtos" de imaginação, protagonizamos algumas histórias hilárias. Junto a meus três irmãos, um pouco mais velhos, e a Dida, nossa tia e mãe adotiva após a morte precoce de nossa mãe, Norma, éramos um familião - pelo menos era o que me parecia e vivíamos, como todos os vizinhos da década de 50, 60, esperando a televisão milagrosa, cheia de homenzinhos minúsculos, que se movimentavam como nós, apesar de tão pequenos e serem em preto e branco. Na frente das primeiras TVs, me ocorre agora, se colocava um celofane, com listras coloridas, pra dar mais sensação de realidade. Pois antes desse milagre, tínhamos algumas aventuras que, em dias previamente marcados, eram partilhadas por toda essa alegre família: os piqueniques à beira do rio, o dia quase raro em que a janta era "café", em vez de comida, com queijo e presunto, tão caros naquela época. As idas pra praia, que duravam o dia inteiro, e as peripécias daqueles dois meses, são um capítulo à parte.
Mas o que eu mais gostava daquela época eram os passeios à noite (e se podia fazer isso), depois da janta, passeios que atravessavam a cidade até o "Alto" - parte da cidade mais distante do rio e bem mais alta, claro. O passeio terminava, invariavelmente, na sorveteria do Seu Léo, onde comíamos um sorvete maravilhoso, também meio raro naquela época. Há uns 7 anos atrás, em visita ao pai, nossa madrasta Magali serviu-nos um sorvete muuuuuito bom e lembrei a história do Seu Léo. Pois não é que aquele sorvete que ela nos servia era dos descendentes dos antigos donos e que o Seu Léo nunca se chamou Seu Léo? Deu-me um nó cego na mente, enquanto me ocorria que o pai nunca o chamou de Seu Léo na minha frente. Na verdade, enquanto nos reunia para o passeio, ele proclamava para a ruidosa família: "Hoje vamos passear ao léu!"...

domingo, 18 de agosto de 2013



Hoje, nosso "Roubando" foi buscar a profundidade de Val, para lidar com as emoções, e a leveza do Eduardo para descrever as esperadas manhãs de setembro. No contraponto, a bem-humorada visão do Motta sobre os relacionamentos, o que faz do nosso blog, nesse domingo, um misto de reflexão, beleza e alegria...

De Val Saab

se estou a seus pés
sensível e tola que sou
abandono todas as roupas velhas 
e crenças estúpidas para voltar
a acreditar que o amor 
me abençoa.
olho para dentro e quase posso tocá-lo.
então, me ensina como vivê-lo, como sê-lo
como espiá-lo do lado de fora. 
agora é quase muito tarde,
mas ainda sinto que posso encontrar o que ficou para trás
perdido em algum lugar esmo, escuro, que me machucou.
mas já que o passado é apenas minha própria ilusão
eu te liberto e te dou como sou: nova.

me perdoem os conselhos amigos, as histórias tolas que já ouvi falar.
esta caminhada só eu mesma posso seguir. sozinha. 
é preciso pensar para viver. sonhar para existir. querer para fazer.


De Eduardo Magrão Menezes
MANHÃ DE SETEMBRO 
Sinto o amor de Deus
Na manhã primaveril, 
Que consigo traz
O desajeitado, mas
Bailarinamente sutil,
Vôo da borboleta,
Que efusivamente
ameaça rasantes,
Rumo ao lindo
E mais que perfeito,
Lilás, rosa e amarelo
Amor-perfeito,
Que banhado em orvalho
Recebe o extasiado beijo,
Da bela, colorida e
Apaixonada borboleta!

Olho ao céu
E fico em dúvida,
Se enxerguei uma fada
Com vara de condão,
Ou consegui ver Deus
De batuta na mão,
Regendo sorridente
Sua orquestra colorida,
Na manhã primaveril.


De Paulo Motta
O cara chega em casa e leva uma bronca da mulher, que encontrou um numero de telefone anotado num papel. Ele consegue - o amor supera tudo - convencê-la de que o número é de um páreo que ele apostou, e mais conversa fiada, e ela meio que se convenceu, pronto! No outro dia ele entra em casa e é recebido pela esposa com um cinzeiro que quase lhe parte a cabeça como uma melancia. "Mas o que quiéisso, meu amor!". "Acontece que teu cavalo ligou!". O amor sempre sofre desgastes na medida em que avançamos na convivência diária. Coisas que eram divertidas passam a serem irritantes, como a tua mania de sair do banho trajando apenas uma toalha feito turbante. "Deixa de palhaçada e vai te vestir que estamos atrasados", aí tu já fica puto! "E vem secar esse banheiro que não sou tua empregada!". O amor desgasta que nem picolé se não houver jogo de cintura e, muitas vezes, abrir mão de ter razão pra ser feliz. Olha só eu falando muito sobre o que sei pouco. Lembro a velha historinha do casal de namorados, no jardim, curtindo a lua e ela pergunta: "Gatão, por quê a lua se escondeu?", e ele: "Se escondeu envergonhada da tua beleza, minha Pixuxinha!". Depois de casados, estão no mesmo jardim, ela faz a mesma pergunta. Ele responde: "Não tá vendo que vai chover, idiota?". Mas o golpe de misericórdia é quando um se refere ao outro assim: "Estávamos eu e esse aqui na praia...!. Esse aqui ou essa aqui é mortal. Não há Gatão e Pixuxinha que aguente esse golpe! Mas vamos lá, mais um remedinho e retorno ao alegre convívio de meus coleguinhas. Tiau!

sábado, 17 de agosto de 2013

Num momento estava ali
a flor

No outro momento
abortada em desordem de pétalas ao vento
- bem-me-quer, mal-me-quer -
já não brindava o ar com sua glória

Tudo em nome
de uma dúvida de amor

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

O PICO
Meu dindo, padrinho e tio David Menezes, era um guri quando me batizou. Mal tinha feito 20 anos, irmão mais moço de minha mãe. Hoje, prepara-se para fazer 80 anos, na mesma época em que farei meus 60, e continua um guri. Ele é o pai do Eduardo, assíduo colaborador do "Roubando Pérolas", nos domingos do nosso blog. Pois do tio David sempre tenho a lembrança das mudanças de cidade, visto que era gerente do Banco da Província (que foi se transformando através dos tempos, sendo comprado e incorporado a outros, até chegar ao Santander de hoje) e a cada novo lugar em que se instalava com a família, abria-se a oportunidade de férias diferentes para todos nós, seus sobrinhos. Tenho muitas lembranças dessa época, mas o que me veio hoje à memória foi o cachorrinho deles, o Pico, tipo pequinês, bem clarinho, que acompanhava a trupe em suas andanças e, quando vinham, ficava lá em casa, onde eu morava com a Dida, mãe adotiva de todos nós. Numas férias em que iam para a praia, tio, Flávia (nossa tia), os guris e o Pico, mais a Dida e a mãe da Flávia, foram parando nas casas e pegando gente. Eu fiquei sozinha pois já trabalhava e não podia sair. Uma semana depois aparece na porta um cachorrinho marrom, querendo entrar. Fiz carinho, mandei-o pra casa dele e fechei-lhe a porta na cara. No outro dia a mesma coisa. E o pior era que o dito abanava o rabo e dava a impressão de que estava ficando íntimo - eu não tinha, na época, nenhuma experiência com cachorros, pois só tinha gatos. No terceiro dia, desconfiei. Botei o cusco pra dentro e fiz o teste da bacia: e eis que um belo banho depois revelou-me um cachorrinho bege, bem clarinho, como o Pico. Claro que fiquei com ele lá, sem entender nada, até eles voltarem, uns 10 dias depois, numa época sem telefones. Pois o Pico tinha fugido do carro, numa das paradas, no outro lado da cidade, e levou quase uma semana pra chegar lá em casa, mesmo não sendo de Cachoeira. Naquele dia uma amiga me visitou e tomamos um porre de martini, emocionadas, enquanto ele nos olhava com a adoração de quem tinha, enfim, voltado pra casa...

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Tudo dorme
sob as cicatrizes
do mau tempo
A primavera ruge
nas pedras da melancolia
e desinfeta os limos

Todas as loucas atitudes
hibernam ao relento
mas não morri em vão
Renasço em cores
sacrificadas nas geleiras matinais

A primavera ruge
à sombra da metamorfose
e as cicatrizes se espreguiçam
como pólen novo da estação

Pernas pra que te quero
se quando quero
não vais buscar

Pernas pra que te quero
se o que mais quero
balança o ar

No ar as vias que espero
preencher o que seja um zero
com as asas do meu cantar

segunda-feira, 12 de agosto de 2013


ESTRELAS
Não sinto mais o calor! O calor de tua mão enorme a me conduzir pelas ruas de Cachoeira da minha infância. Minha mão cresceu, cresceu quase como a tua e, de inveja, passou a ter as mesmas manchas e rugas, para que melhor encaixasse outros seres pela vida, como numa procissão atemporal rumo ao infinito.
Tuas mãos, hoje, já viraram estrelas que povoam meu firmamento interior. Já esvaiu-se o calor, aquele calor que se irradia de células vivas e pulsantes. Mas ah, o calor no peito, quando nos vejo em memórias coloridas, o calor no peito tem um tão grandioso alcance, que me aquecem, de novo, as mãos geladas pelo frio do inverno.
Hoje, outras mãos se encaixam nas minhas. Outras histórias são contadas a cada calor. Mas aquelas experiências milagrosas de reconhecimento da vida são a estrutura de minha afetividade tão facilmente repartida.
Hoje, preparando um texto para o Dia dos Pais, veio-me à memória uma infinidade de lembranças comoventes e engraçadas, que gostaria de registrar. Mas ao começar a contá-las, invadiu-me a certeza de que foram tuas mãos, a me conduzir pelas ruas de Cachoeira, que moldaram a minha história.

10.08.2013 (véspera do Dia dos Pais)

domingo, 11 de agosto de 2013


Hoje, nossos meninos falam na emoção da paternidade: "Quebra-cabeça, talvez assim seja meu coração de pai", do Eduardo e "Aos poucos fui reaprendendo a falar, a engatinhar e a dormir pouco cuidando desse menino que eu queria que, no outro dia, fosse comigo ao cinema e aos sebos comprar velharias", do Paulo Motta, são os "roubos" preciosos desse dia em homenagem aos pais.

De Paulo Motta

Agosto de 1990, 14:40h, o médico retira, da barriga da Ana Maria, uma criaturinha assustada com aquelas criaturonas de jaleco azul, escondidas sob máscaras esterilizadas, que a seguravam pelos pezinhos. Ali estava a melhor coisa que poderíamos ter feito em nossas vidas: nosso filho, o Lobinho! Naquela emoção inigualável, eu contava os dedinhos e olhava pra carinha amarrotada daquele milagre que acontecia bem na minha frente, iluminando a sala de parto num caleidoscópio estonteante. Eu estava pai, eu estou pai, serei pai enquanto estiver nesse plano, nessa dimensão. Aos poucos fui reaprendendo a falar, a engatinhar e a dormir pouco cuidando desse menino que eu queria que, no outro dia, fosse comigo ao cinema e aos sebos comprar velharias. Mas ânsias humanas quase nunca acontecem na mesma proporção dos caminhos naturais e divinos. Sabiamente, nossos filhos crescem exatamente na proporção em que aprendemos com eles, para podermos orientá-los da melhor maneira possível para enfrentarem os desafios futuros. E tanto tememos o mundo que está esperando por eles, que queremos que fiquem, que não se afastem de nós, que mantenham distância da maldade dos humanos, mas chega um momento em que eles já sabem pra onde, como e com quem ir. Pegam as mochilas e nos deixam acenando e rezando na porta, guardando o ninho, agora vazio, com seus adesivos coloridos, fios enroscados na mesinha, a tevê empoeirada e pilhas de DVDs e CDs pelos cantos. Voltarão para nos alegrarem e, um dia, surgirão os netos e netas que, segundo Affonso Romano de Sant'anna, nos permitirão esgotar aquele carinho e afeto que transborda, ainda, em nossos corações. Então, parceiros, amigos, amigas, feliz Dia dos Pais pra todos vocês. Lobo, me liga pra me felicitar, domingo, senão te excluo do testamento, ok? 


De Eduardo Magrão Menezes



DIA DOS PAIS
Quebra-cabeça
Talvez assim
Seja meu coração...
De pai!

Jogo de amar

Jogo de amor
Jogo de montar
Cada peça em seu lugar

Cada filho, uma peça

Cada peça, um amor
E, se falta um abraço,
Me sinto...
Jardim sem flor!

sábado, 10 de agosto de 2013

CORES SOMBRIAS
"Teu seio ainda está nas minhas mãos e meu sapato ainda pisa no teu" (Eu te amo - Chico Buarque). Ouço essa música enquanto pinto portas, com o pincel deslizando no ritmo desse amor desfeito. Ouço "e aí a criançada toda chega e eu chego a achar Herodes natural" (Cotidiano n.2-Vinicius e Toquinho). E o pincel chora a tinta da depressão, numa música, que junto a Pois é, pra quê?(Sidney Miller), maravilhosamente interpretada por MPB4, e Nuvem Negra, de Djavan, com Gal Costa, estampa, em cores sombrias, a desolação em toda a sua imponência. Não desfaço a dor, porque sei que, quando ela se instala, não há rosa que abra, não há samba que anime e o inferno se aproxima em fachos ardentes, os ouvidos amanhecem fechados e as mentes obtusas. Todos os abraços e gestos de ternura morrem nessa praia de águas poluídas.
Faço esse texto pensando em quem ainda não invadiu, sem sentir, o caminho da certeza. Essa visão meio transcendental de um mundo além de nós mesmos e do nosso tempo. Faço esse texto, porque já enlouqueci nessa busca frenética por motivos, quando o motivo é apenas o de estar aqui, nesse lugar de passagem, com amores que vão e que vem, com riquezas que se acumulam a cada porta fechada. Faço esse texto porque gostaria que fosse mais fácil perceber que sofrer é o outro lado da motivo, exatamente porque, num cantinho da memória, sobrevivem, para sempre, "meus sapatos pisando os teus"...

Amores serenos
procuram suaves 
por almas serenas
Amores inquietos
reconhecem a febre
das almas inquietas
Amores felizes
habitam sorrisos
das almas felizes

Por isso
se queres saber quem virá
invadir teus delírios
Se queres saber
de quem é esse rosto
que hoje repousa nas sombras
te examina no espelho 
que a vida desenha
nos invisíveis caminhos do tempo

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Se alguma parte de mim
rolar ladeira abaixo
não tentem impedir

É o ir e vir
das tormentas
que precisam ser descartadas
para que novas e novas possibilidades
possam transformar-se em rumo

Sobrevive o fundamento
a essência de um novo contexto
nunca antes explorado

Assim somos todos nós
Essa metamorfose de idéias e sentimentos
expandindo um caminho nunca estanque
porque humano
e nem sempre confortável
porque estranho

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

A humanidade
e seus tentáculos
apossou-se de tudo
o que eu podia

Ao viajar de mim
indo ao encontro de cais estrangeirados
perdi meu pobre núcleo indivisível

A princípio
o pânico avassalador fez-me refém de umbrais
e becos malcheirosos

Mas eis que a respiração
reconhece fronteiras iguais às da ternura
e se surpreende
Defronta-se com estações desconhecidas 
de indignação
e se surpreende mais ainda

Como emudecer de susto
ante tão rica explosão de sensações 
se a palavra pede o inusitado
para que se transforme em dádiva

Como emudecer então
se a humanidade me alimenta
com milhões de vozes em busca de seu eco

terça-feira, 6 de agosto de 2013


O outono foi embora
e levou consigo a intenção de calmaria

O frio
com suas facas amestradas
tenta romper a dor 
em toda a sua magnitude

Mas o amor
com suas mãos iluminadas
desenha o inverno com as cores de maio
e me conduz no colo
pelos desvios do desassossego

segunda-feira, 5 de agosto de 2013


A ESSÊNCIA


Era só uma roupa velha. Caindo aos pedaços, mesmo. Mas ao catar possíveis cobertas para os bichinhos de rua, por iniciativa de Elenara Nunes, achei essa calça de abrigo, tão usada, tão manchada, uma calça que me acompanhava há tanto tempo que, por sabê-la testemunha, era-me difícil relegá-la a trapo de limpeza. Minha muito usada calça azul, que saiu prá correr, andou de bici, cuidou do jardim, pintou, pintou muito, limpou com q-boa, fez mosaico, pintou mais um pouco e se recusava, depois de muitos anos de história, a se aposentar. Pois suas velhas pernas emendadas terão, em sua derradeira missão, a oportunidade de transmitir calor a algum animal abandonado.
Fiquei me lembrando de uma casa vizinha, recém-vendida, que os novos donos, no entusiasmo da renovação, reformaram tudo, colocaram na frente os móveis velhos e trouxeram os seus, mais modernos, com sua alma em cada coisa que ia inaugurando o novo sonho. Poucos meses antes, até falecer o antigo dono, sua família amava cada cantinho, cada móvel usado, cada arranhão na madeira que lembrava uma bicicleta da infância, cada lençol desbotado ainda a dedilhar a marcha nupcial. Mas para outra pessoa, a essência daquelas vidas não era visível. Pois todas as nossas pequenas maravilhas - com as histórias que revivem em nossa alma -, despidas de suas emoções, nada mais são do que desencantados trastes velhos.

domingo, 4 de agosto de 2013

Nosso "Roubando", hoje, de novo diversifica, trazendo a arte de Liana Di Marco, na coleção Incas, Maias e Astecas. De Val, um poema belíssimo, na luta entre os dois pólos que compõem nossa existência: o da voz e do silêncio, o da energia e da contemplação. E o nosso Motta e as peraltices com sua avó Cantídia. Delícias puras para o nosso domingo...

De Liana Di Marco



De Val Saab

o canto silencioso de um pássaro que se só pode ouvir
se chegar bem perto.
é preciso esta certa magia para entender alguns passos da
vida.
desculpa se ainda sou tão crua para esta caminhada,
mas o coração é descompassado e não quer saber de não poder
ou não ter ou não ver ou não poder!
ele quer!
desbravado em seu caminho quer ir para todos os lados sem
parar, sem piedade e sem dó.
é preciso controlar este cavalo indomado para sentar e escutar o canto
deste pássaro misterioso. escutar esta canção de amor
tão baixa, tão longíqua que quase já não posso me lembrar,
mas sei que existe.
e sei que vive em mim.

De Paulo Motta

O Dia dos Avós foi meio apagadinho, né? Meus avós já desembarcaram há tempos, mas a lembrança que ficou, principalmente de minha avó materna, é de uma ternura de vó, a Cantídia era uma avó pós-graduada em avolices, como diria Plinio Nunes, na Sagrada Universidade das Guloseimas e Caldos Quentes Ao Anoitecer. A cândida Cantídia adorava sair comigo, passear com o carro emprestado da Norma, e fazíamos uma alegre romaria pelas casas de suas antigas amigas, algumas em viúva solidão, e relembravam saraus com orquestras argentinas e furtivos flertes com guapos rapazes de polainas e palhetas, que lhes prometiam altares ornamentados de amor, carinho e filhos. Um dia estávamos na casa de Dona Eulália, que resolveu passar uma receita de um doce de maracujá ou algo assim. A incumbência de anotar a fórmula do quitute ficou comigo, pois nenhuma conseguia enxergar pra anotar. Lá vai: meia dúzia de ovos batidos, canela em pó batida em leite fresco; aí começou a aflorar o meu lado mau e a receita final ficou mais ou menos assim: oito parafusos de meia polegada em óleo 40, duas longarinas sextavadas de 60cm, trinta rebites de uma polegada e por aí foi. Voltei pra Santa Maria, onde estudava e, no próximo feriado, lá estava eu em São Borja, visitando minha avó que me recebeu indignada: "Porque faz isso com a tua avó, Paulinho?", eu nem lembrava da receita adulterada. "Fui fazer a receita da Dona Eulália e parecia receita pra consertar trator, meu filho!". Aí peguei o carro e voltamos à Dona Eulália para, agora sim, copiar a receita corretamente. Por via das dúvidas a Cantídia levou o óculos. Ósculos e amplexos a todos vocês!

sexta-feira, 2 de agosto de 2013


Não tenham medo
das mágoas que abrem crateras
São espaços que o vento
há de preencher com folhas

Como a porcelana
ao se partir em nacos insondáveis
é a fênix ressurgida
na peça de mosaico

quinta-feira, 1 de agosto de 2013


Um deus que me faz escolher
entre o amor e a frustração
não me representa

Prefiro confiar nessa energia
que me complementa
em tão perfeita harmonia
que basta um movimento de generosidade
para que as cavernas se escancarem
em janelas floridas

Prefiro esse deus
que desce de suas nuvens
e que respeita escolhas
como se elas fossem rezas
e aceita as rezas
como se elas fossem
um alegre encontro de família