sábado, 28 de dezembro de 2013

Melhor permanecer calada...

Sao os pássaros
que conduzem a conversa
em efervescentes
cerimônias matinais

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

O SOL
Era pra ter sido o natal da desesperança. Era pra ter sido o natal das luzes apagadas e dos pensamentos sombrios. A mãe havia morrido há dois meses e era como se tivesse levado junto a capacidade do mundo acordar de manhã e rir simplesmente, pelo simples fato de existirem os dias e as noites, com sua riqueza profunda e seus ensinamentos. 
Eu tinha 5 anos, meus irmãos de 9 a 12 e, de repente, lá estava aquela enorme árvore, um pinheiro de verdade que encostava no teto, e lá estávamos nós a pendurar bolas de vidro colorido, que se refletiam em nossos olhos, trazendo de volta a cor que havia sumido sob os véus da tristeza. Na cozinha, a movimentação era intensa e, na tarde do dia 24, os pratos foram recheando a mesa de seus sabores e aromas a nos chamar à confraternização.
Num determinado momento tínhamos de sumir, não lembro bem pra onde, para que os presentes, milagrosamente, brotassem do chão em volta da árvore. Penso que, nessa época, já não acreditava no Papai Noel, pela delação de algum irmão maior. Mas, ao voltarmos, a árvore estava magicamente repleta de pacotes. Tinha um enorme, embaixo de todos, que atraiu nossos olhos ávidos, como se houvesse um fio invisível que poderia abrir o presente só com nossos olhares.
Chegaram nossos avós maternos, e com a Dida e o pai, sentamos em volta da árvore a espichar as mãozinhas a cada nome chamado, a rir e chorar com os desejos realizados, a rasgar os papéis com a sofreguidão gerada pela ansiedade. E então lá estava o maior pacote e era meu. Meu! Uma caixa enorme que se abriu ao mundo como se tivesse o poder de sanar todas as perdas. Dentro, a me devolver olhares, estava a maior boneca que eu já vi. Era quase do meu tamanho e enquanto lutava para tirá-la da caixa, os adultos nos enlaçaram com a emoção de uma ação que tinha valido a pena. Soube pela Dida, nos anos seguintes, que haviam juntado todas as economias para nos dar um natal diferente, que nos fizesse esquecer, por alguns instantes, que viver também podia ser um fardo.
Era pra ter sido o natal da desesperança. Mas aquela linda boneca, que acompanhou meu crescimento pela vida afora, foi meu mais inesquecível presente de natal, pois me ensinou que a generosidade é luz que irradia. Meus avós, o pai e a Dida haviam voado acima da nuvem negra pra nos buscar o sol e tinham conseguido reinventar, também para si mesmos, o quase perdido caminho da iluminação.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Pois não é o amor
e sua milagrosa química de sensações
que recheia nossos vãos internos
com o mais endiabrado coração?

domingo, 22 de dezembro de 2013


Dois belos textos sobre a alma desarrumada. Dois belos textos sobre a esperança de uma nova luz. Joice Bermann, com um belo poema e o Motta, que me comoveu muito em suas palavras "Que descuido o meu; abandonei-me, abandonei minha alma, deixei de lado o cuidado diário que minha casa precisa, corri o risco de me tornar mofado, cinzento, opaco."

De Joice Bermann 
Rasgue-se
O peito,
Arranque-se
As dores,
Os medos,
Os horrores.

E do rasgo
Fluam
Doces
Sonhos,
Esperança,
Acalantos,
Amores,
Cores.


De Paulo Motta
VAZIOS
Eu costumava chegar no jornal, lá em Caxias, cedo da manhã e passava pela cabine da telefonista, onde ficava conversando um pouco antes de ir para a minha sala.
Numa dessas vezes ela me olhou e disse: "Tudo bem, Motta? Parece que estás com a alma desarrumada!". Seus olhos leram a minha alma como nunca ninguém havia feito antes. Aquela moça, uma ilustre desconhecida, enxergou pela fresta da persiana da minha casa fechada e viu a mesa da sala com restos de um jantar inacabado, como se os convidados tivessem sido tragados pela noite escura sem terminar a refeição.
Alma desarrumada, alma desarrumada; demorei pra me recobrar da surpresa, como se tivesse sido flagrado cometendo algum delito, sabe? Colei na boca um sorriso inoportuno e continuei mergulhado na minha casa desarrumada, vazia mas bagunçada, quartos empoeirados com pouca luz e agora não dá pra ajeitar tudo, nem vou receber visitas, mas preciso dar um jeito nisso.
Se a menina não me avisa ficaria tudo nesse abandono que só vi agora.
Aos poucos fui trocando os lençóis, sacudindo os tapetes, esvaziando as latas descascadas das prateleiras e jogando um montão de remorsos e inseguranças no forno eterno do esquecimento, no lixo.
Tenho o péssimo hábito de colecionar saudades que, enfileiradas na janela, saltam no meu pescoço se, por descuido, passo muito perto. Ah, as saudades! Como me livrar delas sem que percebam? Fizemos um pacto, então: só apareçam quando chamadas, certo? Nem acreditei que concordaram, as danadinhas!
Abri as janelas, iluminando a cama enorme e nem lembrava da cadeira de balanço com encosto de vime ali no canto, que coisa!
Que descuido o meu; abandonei-me, abandonei minha alma, deixei de lado o cuidado diário que minha casa precisa, corri o risco de me tornar mofado, cinzento, opaco.
A partir disso procuro manter as coisas em ordem e limpas pra qualquer visita repentina - essas coisas acontecem quando tu estás de ressaca e com a barba por fazer - e sei que por mais que eu me prepare, as visitas à minha casa/alma são sempre inesperadas. Senão não teria graça, não é?
Boa noite.

sábado, 21 de dezembro de 2013

Pra não rebentar de inveja
quem nesse calor derrete
esse mar que aqui graceja
congela como sorvete


quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

A VAGA
Num dia de calor assim, ensolarado assim, eu consegui me atropelar. Essa façanha inconcebível provocou uma reação em cadeia e a quadra inteira recheou-se de feitos improváveis.
Tudo começou em Capão Novo, às 8 horas da manhã, num sábado de verão. Sempre gostei de ir ao supermercado cedinho, com o carro lotado de garrafas de cerveja - as latinhas ainda eram muito caras -, antes do movimento e da tradicional romaria à beira do mar. Enquanto organizava a lista tive a infeliz ideia de ligar o carro estacionado à frente de casa, para ir "esquentando", num tempo em que os primeiros motores a álcool sofriam com a ressaca noturna e nos negavam seu vigor. Era um Passat azul-petróleo, estalando de novo, e eu me sentei de lado no banco do motorista, com as pernas pra fora, pois pretendia ainda voltar pra dentro de casa. Sentei, puxei o afogador até a frente pra apressar o aquecimento...e virei a chave.
Num instante, num absoluto e miserável instante, o carro adquiriu vida própria pois, por um absurdo ato de patetice, o motor tinha ficado engatado - de ré - no dia anterior. Assim que ele corcoveou pra trás, derrubou-me do banco e fiquei presa pela porta, sendo arrastada por alguns segundos, antes que ele decidisse sua trajetória por cima de carros, postes, placas e paredes do condomínio. Eu fiquei ali atirada, toda esfolada e com o pé quebrado, literalmente na sarjeta, vendo minhas economias voarem ladeira abaixo. O Passat, sem porta e sem os vidros, dobrado ao meio, foi vencido por um viga mais potente da quina do edifício. Mas deixou derrotados três carros, dois postes, a placa de mármore do condomínio e um enorme pedaço de parede. Sobreviveram, galhardamente, doze garrafas vazias de cerveja, que rolaram lomba abaixo, como se quisessem escapar de toda a responsabilidade pelo prejuízo.
Era cedo e, misericordiosamente, não havia ninguém na rua. As pessoas começaram a aparecer nas janelas atraídas pelos estrondos pavorosos. Eu ali, triste figura na sarjeta, escuto os gritos de um desconhecido, na sacada de uma vizinha cujo marido trabalhava até as 10h. "Meu carro, meu carro"! O carro dele era um dos avariados pelo Passat e tinha ficado bem amassado. Acontece que, para compartilhar a noite solitária da minha vizinha, ele havia surrupiado o carro de um cunhado, irmão da mulher dele. "Meu carro, meu carro! O que eu vou dizer pra o meu cunhado? O que eu vou dizer pra minha mulher?". Nisso chega a Brigada e tenta convencê-lo a registrar a ocorrência, para ter direito ao meu seguro, mas ele se nega. "Deixa assim, deixa assim". Ainda de camisa aberta, sem os sapatos, sem o cinto, entra no carro avariado, que mesmo assim não nega fogo, e escapa lomba abaixo. No mesmo instante em que ele passa batido pelas fujonas garrafas de cerveja, o marido chega e estaciona na mesma vaga onde ele havia estado. "O que houve, o que houve, aconteceu alguma coisa com a minha mulher?"

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

E o guerreiro enfim se lança
como um morteiro febril
a comandar a festança
das loucas cores de anil

Cansou de abanar a trança
nessa dormência senil
e se apresenta na dança
como um parceiro gentil

Fosse um ás que nunca esquece
um funcionário-padrão
eu não teria a noção

Pois tudo que se esmaece
nunca volta como vela
mas um céu cheio de estrela 



terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Nada muito poético
me salta aos olhos
Metáforas
provérbios
verbos decassílabos
Nada
nada me surge
para sussurrar à mente

Talvez agora
de repente
a idéia das curvas sensíveis
do corpo amado

Mas isso não é poesia
É saudade
é falta
é um sem-querer de solidão 

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Que o veneno dos meus ais
permaneça em cova rasa

O silêncio é mais...

Roupa lavada
se suja em casa

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Queria te amar melhor
queria muito

Talvez um pouco menos quieta
Um pouco de Renato Russo
a te dizer
que minha respiração
é música urbana

Não respiro quando penso em ti
Temo desassossegar o resto do teu sono
e velo como espírito de luz
em volta de teus passos

Queria ser mais febre
mais revolução 
mais tempestade

Um pouco menos dessa alma esvoaçante
que te deseja como se tocasse em flores
e que te embala
quase que em total segredo

domingo, 1 de dezembro de 2013



No Roubando de hoje, uma estréia. Joice Bermann e sua sensibilidade trazendo um pouco de luz ao nosso tempo. E o Motta nos ensinando que a risada, quem diria, também é uma arma. E que arma!

De Joice Bermann

No fio da teia,
habitam invisíveis
ternura e aconchego.


De Paulo Motta
ENFADONHA
Essa palavra me parece alguém cantando um fado maçante enrolado numa fronha, não parece? Que nem 'grandessíssimo'. Quando ouvires essa palavrona, saiba que ela não vem acompanhada de nenhum elogio: aquele grandessíssimo salafrário, aquela grandessíssima vadia, viram como tenho razão? Ninguém diz: aquele grandessíssimo cidadão de bem.
Mas se queres fazer alguém profundamente irritado, ria dele. Se queres fazer alguém descer de sua arrogância petulante primata, gargalhe dele, o efeito é devastador, garanto-lhes. Dependendo do grau de irritabilidade da futura vítima, melhor fazê-lo numa distância segura, para o caso dele querer cobrir-lhe de porrada, o que é muito frequente em tipos assim, que se acham os donos do mundo.
Alguma coisa aprendi na escola, uma delas foi a arte da azucrinação, com mestres no assunto - meus colegas franzinos - que não podiam enfrentar os grandões bonitões. No recreio, faziam um grupinho num canto e ficavam apontando para uma das vítimas e rindo a valer. Rapaiz, o cara se encanzinava e vinha pra cima, mas ai já era tarde, a maldição já estava lançada e o infeliz corria atrás dos azucrinantes mas não conseguia pegar ninguém.
Meu falecido compadre João Telmo era um mestre nisso. Pós graduado no Tibet, com monges azucrinolim, herdeiros dos shaolins.
Numa noite estávamos na frente do CTG Tropilha Crioula, em São Borja, esperando uma brecha para entrar sem pagar no baile, e encostou uma camionete bem na nossa frente e o motorista apontou um 38 pro João Telmo e falou: "Tu te lembra de mim, fiadumaputa?", e o Telmo: "Claro que me lembro, te caguei a pau, semana passada, e ainda te tomei essa bosta desse revólver!". Quase me borrei perna abaixo! Desgraçado! Meu amigo quer morrer e me levar junto, só podia! E o pior, depois da resposta do meu amigo todo mundo desatou a rir e o cara do 38 fez menção de descer e aí formou um bolo e, quando me dei conta estávamos dentro do CTG, bailando. Eu encagaçado, mas bailando ao som de Os Dinâmicos.
Então, a risada é uma arma mortífera, desde que bem manuseada, senão pode se voltar contra ti, é bom treinar antes. Existem boas academias de gargalhadas por aí, todas muito sérias, se é que pode. 
Vou fazer minha logística vespertina - uma vespa libertina - e volto logo pra ouvir o relatório da reunião de hoje, no lançamento da minha candidatura! Masbá!

sábado, 30 de novembro de 2013

Já levantei a taça de cicuta
Lembram vocês que me viram então?
Já levantei a taça de cicuta
e a provei até
E com ela equilibrada nas mãos
reservada para um momento de desesperada sede
cruzei o mapa mundi com os pés em carne-viva
atrás de uma conciliação
entre o ser e o estar

Não sei onde a perdi
Não sei onde a deixei encostada 
em alguma pedra do caminho

Sei que alguém pode encontrar a taça
e sei que vai bebê-la
E eu deveria estar aqui
para avisar que além dos venenos
existe outro tipo de consolo

Mas não posso
porque não sei quando descobri
que a dor é simples pulso
e o passo 
um passo apenas 
é o suficiente

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Tempo demasiado
descansando nas sombras...

Agora quero brincar
com esse anjo travesso
que mora na ruas
longe das noites internas

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

domingo, 24 de novembro de 2013


E foi num dia de chuva que o Paulo Motta voltou a pedir emprestado o livro Camilo Mortágua... E foi ouvindo um fado que Val Saab escreveu um de seus mais belos poemas...
Roubando Pérolas, num dia de passeio interior!

De Val Saab

quando estive em Portugal, tive a oportunidade de escutar muito fado. Principalmente no último dia, com um foninho sem-vergonha daqueles ônibus que fazem tour pq o tempo curto me empurrou para eles.....então escutei isto: "o amor é um contratempo....." e me inspirei:

não temos tempo a perder
somos fugazes
a lua brilha na noite escura porque sempre
existe - também- um diamante 
na nossa escuridão.

não há tempo a perder
mas o tempo precisa ser 
cuidado.

que haja calma nesta
pressa da vida e que
a gente sempre encontre
tempo para se encontrar.

De Paulo Motta

CHUVA
Paixões amortecidas brotam, espreguiçando-se, nesse dia chuvoso e lento. O manto líquido cobre a cidade e bailam aquelas lembranças, que não querem ficar quietas em seu baú escondido, nos quartos empoeirados da nossa alma. Estou a um passo de me deprimir e mergulhar num pranto silencioso, acariciando as minhas tristezas guardadas, despertadas nessa tarde sonolenta. 
Quando ponho o pé dentro da sala, onde me esperam tristezas e cântaros de lágrimas, a filha do velhote chato do sétimo andar me puxa pelo braço! Não lembrava da Cátia Cilene, tão linda, no auge de seus vinte anos, me convida para entrar enquanto ela procurava o Camilo Mortágua que eu pedira emprestado, no saguão do Edifício Portal. 
Por que ela estava somente com aquele beibidól amarelinho não sei e nem quero saber, mas não seiondevouenfiarasminhasmãos, cruzes, vade retro, sou um rapaz sério. Já imaginou se meto a mão naquele quitute lourinho, com cabelo de massa cabelo-de-anjo, uma tentação, é isso! O demônio me tentando no Monte das Sacaninhas! E que demônia, ela. Meu cérebro disparou e perdi o controle sobre ele! Está tentando me fazer de idiota. Ou não? Acho que sim, mas talvez não, e a eternidade que a Cátia Cilene demorou para trazer o livro foram três minutos e ela voltou, rebolativa e provocante, tenra tentadora aterradora e ali, bem na minha frente, entregando o livro e eu nem lembro o que vim fazer aqui. 
Talvez eu seja um louco, mas vou beijar essa obra prima que saiu das mãos do Senhor, seria um descaso com o trabalho Dele nem ao menos tentar tocar com as minhas duas patinhas dianteiras; e ela continua me olhando, com a mão estendida e o Morte e Água do Camilo sorrindo. Consegui me desvencilhar e correr pro meu apartamento, com sofrimento, nunca mais terei outra oportunidade, sou um bobalhão, medroso. 
E chovia naquela segunda-feira modorrenta, sodomenta, gosmenta e a campainha toca. Era ela, singela donzela vestida com um jeans mais comportado, me trazer uma ficha de leitura que estava dentro do livro e caiu, poderia me ajudar no trabalho do Irmão Mainar Longhi e o Camilo Mortágua. 
Entendi tudo como uma segunda chance que a Cátia Cilene me dava, é isso! Entra, Cátia, Catinha, Catita, bonita, tenho café, Mountain Dew e bolachinhas Maria.
Nem chegamos às bolachinhas Maria, Cátia linda, delicada, amada ficou tão pouco tempo na minha vida, desceu do carrossel e foi embora com seu pai, do Banco do Brasil, pro Rio de Janeiro.
Bueno, vou almoçar depois volto para o convívio com meus amigos maravilhosos. Adoro vocês, tigrada!

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Moro na beira desse mar
de revoltas palavras

Ora como um manto
de infinita areia
Ora como as pedras 
de uma inviolável fortaleza interior

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

O UNIVERSO
Quando eu tinha 14 anos, meu primeiro amor adolescente me tirou pra dançar. Era apaixonada desde os 12 e ele mal me olhava. Lindo como um apolo, foi o sonho efervescente de todas as garotas de minha época. Mas os hormônios trouxeram, junto com as faces profundas do amor, os muitos quilos a mais que minha infância havia economizado. E, enquanto engordava, afastava o amor como se tivesse um vírus contagioso. Adolescentes grudavam os olhos em belas estampas e, invariavelmente, ser feliz estava ligado apenas ao que brilhava.
O amor aos doze anos é exigente e logo comecei a correr atrás de sua atenção. Era irmão de uma amiga e logo passei a visitá-la com a assiduidade de um funcionário-padrão. Pobre coração sem noção! Eu achava que ele era meu cais, meu caminho seguro construído em mundos imaginários. Mandava recados e recados e não voltavam as letras construídas em resposta. Até que alguém me contou que ele havia declarado alto e bom tom, que "nunca teria nada com aquela bolacha!".
Foi um caos interior, muito pouco compreendido, mas a inocência não via tempo para as sombras, preferindo ocupar seus dias em brincadeiras remanescentes e passeios coquetes pela praça da cidade, onde os garotos ficavam parados em bando, esperando nosso desfile. 
Enquanto eu crescia, o corpo tomava conta de suas curvas e os olhos masculinos, antes tão arredios, agora já me visitavam com o vagar de um inquilino.
Mas o amor continuava acenando de longe, até o dia em que ele me tirou pra dançar. Foi uma música, só uma - My Way -, mas durou os dois anos de espera. Por aqueles 5 minutos vivi o universo dentro do peito. Por aqueles 5 minutos as fadas do bem voaram de mãos dadas com as notas da canção imortalizada por Frank Sinatra. Depois de muito tempo a música terminou e nos separamos, ficando para sempre, em meu coração, o calor do seu corpo.
Se ficamos juntos? Claro que não! Eu já havia vivido uma vida inteira de sensações naquela pista de dança e ter conquistado seu corpo melodiosamente colado ao meu mostrou-me a magia da auto-estima e o universo, com sua gama muito maior de possibilidades, abriu seus braços à minha trajetória.

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

É dia de honrar o sol
em sustenido e bemol
rezando uma melodia
nas notas dessa folia
que teimam em ofertar
a pausa no meu penar

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

A SOMBRA
Cada vez que avançam os ponteiros da balança, em seu delirante desafio, sinto saudades daquela menina magricela que habitou meu corpo nos primeiros anos. Comer era a obrigação mais enfadonha do dia e eu a cumpria com o descaso de uma relação já desgastada. Com o tempo fui adquirindo uma habilidade impressionante em remexer a comida no prato, amontoando porções aos montinhos, que davam a impressão de espaços vazios. Um ou outro pedaço de carne mastigado e estava feita a ludibriante cena. Por algum tempo essa solução livrou-me do tormento, mas logo a pressão recomeçou.
Um dia, no centro da mesa, como iguaria principal, estava um vidro de óleo de fígado de bacalhau. O pai, antes que as perguntas viessem em bombardeio, começou a apresentar as drásticas resoluções tomadas pelos adultos, na calada da noite anterior. A partir daquele dia ninguém mais precisava comer, se não quisesse. Liberdade total de escolha! Bastava que se optasse por uma colherada daquele vidro mágico, com seus nutrientes essenciais, e tínhamos a liberdade do prato vazio. Pareceu-me tão pequeno o preço a pagar que, na mesma hora, agarrei-me à esperança de salvação. A colherada veio ao encontro da boca escancarada e, assim que encharcou-me o paladar, voltou como um foguete por cima do mundo e das pessoas em volta, seu gosto horroroso temperando o almoço do dia. Quem já tomou óleo de fígado de bacalhau sabe o gosto insuportável que tem. Pois o sonho de substituir a comida terminou no instante em que o provei, num golpe de mestre do pai e da Dida. A partir de então, as refeições eram consumidas com uma aplicação exemplar, sempre observadas em silêncio pelo vidro fatídico.
Penso que foi esse dia que acordou a balança. Comecei a comer, e da abrigação passar ao prazer foi um passo. A adolescência descobriu os lanches, os salgadinhos, o álcool e, até que eu aprendesse a equilibrar tudo isso, a vida atravessou um longo curso. E os quilos a mais, como uma sombra nefasta, passaram os anos caminhando insistentes ao meu lado.

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Rasgo outubro
no calendário 
de minha viagem

No amanhecer
de um novo mês
o dia cheira a talco

domingo, 10 de novembro de 2013


Enfim podemos voltar à troca de palavras! Enfim "Roubar Pérolas" vai voltar a ser um hábito dominical. A utilidade das baratas, na visão do  Paulo Motta e o poema a um novo amor, do Eduardo, fazem o dia nascer mais rico...

De Eduardo Magrão Menezes

PÉROLA NEGRA
Me sinto amor velejante
Em marolas suaves
Singrando teu doce sorriso,
Pra ancorar em teu beijo!

De olhos fechados
Sinto a brisa do teu amor
A sorrir de braços abertos,
Aprendo a voar...

Me transformo,
Transmuto...
Adolesço calmamente.
Sou um novo...
Velho coração aprendiz,
No amor sabor chocolate,
De minha negra Nana!

De Paulo Motta

CUCARACHAS
"La cucaracha, la cucaracha
Já no puede camiñar
Porque no tiene
Porque le falta 
Marijuana pra fumar.
Una vieja con un viejo
De noche dormiam juntos
Porque la vieja tenia 
Mucho medo a los defuntos..".
Quem tiver nervos fracos, estômago vazio que não suporte cenas fortes, por favor, desligue o aparelho e vá pentear macacos. Vou falar sobre a pequena e asquerosamente injustiçada barata!
Discriminada, principalmente pelas mulheres, esse pequeno animal envernizado, tem a capacidade de sobreviver aos cinco cavaleiros do apocalipse - incluímos o Renan Calheiros - e mais 24h assistindo ao Faustão. Mas não aguenta uma chinelada, vejam vocês! 
Muitas vezes passei por verdadeiro herói ao matar, corajosamente, horrenda e perigosa barata que ameaçava a delicada donzela que urrava, pulando, sobre a mesa de centro. Sem a barata e suas anteninhas ligadas nas mulheres - elas adoram as mulheres, devem ser todas baratas machos, ou baratos - eu não teria vivido tantos momentos de heroísmo diante das namoradas. Uma delas, a Malu, mulher decidida, dona do próprio nariz, ciente de seus direitos e limites, nem sei como quis ter alguma coisa comigo, meio dependente, muito preguiçoso e meio bêbado. Mas essas coisas que a natureza nos atira no colo e diz: te vira! 
Uma noite estávamos nos preparando pra sair e ouvi um grito seguido de vários outros e objetos quebrando - juro que pensei que fossem o Jackie Chan e o Chuck Norris trocando gentilezas na minha cozinha - corri até lá, abotoando a camisa e me deparei com 1,76 e 75 kg de Malu sapateando na pia de granito, observada por uma hermosa cucaracha, no chão. Mas o bichinho é debochado, mesmo! Se aproximava e a Malu berrava, então ela recuava, e avançava novamente! Uma barata inteligentíssima, pensei em treiná-la e montar um show! Para aprimorar a coreografia do destemido justiceiro de baratas, armei meu melhor golpe, aprendido em segredo com os monges baratolins - primos dos shaolins - e, zás! matei o nojento mamífero, antes que a dama destruísse minha pia a pisotaços! Matei e exibi o cadáver, que nem um carrasco exibindo a cabeça do decapitado, minha glória de cavaleiro vingador das vestais ameaçadas por seres de todos os tipos. Desde que os tipos sejam bem menores do que eu, é claro!
Pra quem pensava que barata não tinha utilidade, ela pode ser responsável pelo aumento da tua autoestima, quando esmagares uma e receber da namorada um beijo, seguido de um "Meu herói!", hein, hein? E viva a barata, a barata, cantada em verso, cantada em prosaaa!
Na próxima aula - anotem, por favor - tragam-me uma síntese sobre as baratas voadoras. Do que se alimentam, onde vivem, pra onde vão, quais seus escritores prediletos, ok?
Boa tarde a todos e bom sábado. Vou ao jardim, depois conto como estão meus pés de bigorrilhos, que começaram a brochar. Até...

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Seguia tão distraída
pensando poemas
que quase tropeço
num raio de sol...
O CASAMENTO
A mãe, uma artista de sentidos repletos de emoção, adorava música. Nos cinco anos em que convivi com ela, estive sempre rodeada de noturnos, sonatas e concertos, que me embalavam os sonhos como se Chopin, Bethoven ou Liszt estivessem ali, ao alcance das mãos. 
A eletrola, elefante-branco que reproduzia sons, foi a grande aquisição da família, antes da era da televisão. Tinha o tamanho de um balcão de 1 metro de largura e era composto de toca-discos, rádio e auto-falante, reunidos num mesmo móvel que ornamentava a sala, como ornamentavam nossa vida os sons que dele saíam.
Todos os meses, quando recebia seu vencimento, como era chamado o dia do pagamento do salário de professora, a mãe trazia um disco novo pra casa. Era uma coleção mensal, muito bem gravada, com excelentes músicos e tinha uma característica irresistível. Vinha lacrada e só revelava seus segredos sonoros a quem apostava em seu escondido conteúdo. Com a curiosidade como maior propaganda, era uma coleção que desaparecia rapidamente das bancas. A mãe trazia o pacote inviolado e o abria na nossa frente, que reunidos em volta, saboreávamos a novidade. E o som, como se fosse volátil, se espalhava no ar para que o respirássemos.
Embalada nesse sonho, um dia ela comprou um piano. Quería-nos virtuoses a embalar seus dias. As manas logo foram para as aulas de música com a professora Alda Eggers e eu, como tinha só três anos, assistia fascinada. D. Alda era severa e exigia uma seriedade difícil de manter em meninas de oito, dez anos. Mas, a partir das escalas cansativamente repetidas pelas manas e espiando o que acontecia nas cordas dentro do piano, fui compreendendo a peculiaridade de cada uma daquelas teclas mágicas. Daí a querer experimentar as notas foi um passo. Tirei de ouvido "Atirei um pau no gato" e, como o miau final era uma oitava acima, eu ficava procurando a nota até que o ouvido a aprovasse. Quando apresentei a música pra D. Alda, ela ficou encantada. Sua turma de alunos tinha uma audição de piano naquele mês e ela resolveu encerrar as apresentações com aquele miau procurado na ponta do dedinho indicador. Ah, como me lembro daquele dia em que, pela primeira vez, tive contato com a arte. Todas as pessoas que bateram palmas, pela ousadia de uma garotinha de três anos em busca dos sons, não sabiam então que se iniciava um casamento indissolúvel. E que, quase sessenta anos depois, numa viagem de palavras, cores e sons, das pontas dos meus dedos ainda fugiriam ideias em frenética busca de ar.

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Aos meus amigos nesse caminho de palavras, não estou afastada por vontade própria, mas estou sem internet desde o dia 27. Logo, logo estou de volta e tudo que tenho escrito poderá voar!

domingo, 27 de outubro de 2013


Nosso Roubando Pérolas , hoje, traz uma das parábolas mais intrigantes do Paulo Motta. Surreal, mas profundamente lúcida, como tudo que o nosso amigo apresenta. E, no contraponto, o lirismo (ah, que saudades estávamos) do Eduardo. Delícias para esse domingo de sol...

De Eduardo Magrão Menezes
TEU BEIJO
Gosto
Do teu jeito de menina
E do quase fechar os olhos
Ao sorrires pra mim!

Gosto
Da levada menina
Disfarçada em anjo
Que encontrei em ti!

Amo
Morder com jeitinho
Teu lábio carnudo
Num beijo sem fim!

Ah...
Essa boca maldita
De fêmea bonita,
Me faz delirar...

Quero
Teu beijo molhado,
Teu corpo colado,
Teus olhos em mim.

Sou...
O amor que plantaste
Em meu peito carente!

Sou...
Poeta a deriva
Que no mar dos teus beijos...
Perdeu-se de amor!


De Paulo Motta
Na décima terceira badalada do sino da catedral de Carpanotown, salto do sofá e observo a bruxuleante claridade que se derrama, através da janela enorme que ornamenta a sala da mansão gótica de Sir Cunstance. Meu Deus, que ressaca! Pudera, há dois dias encho a cara com os uísques paraguaios de Cunstance, não sabia que sua decadência era tão decadente! Não há energia, só lampiões a gás e velas por todo o lugar. Trabalho com exterminação de pragas como baratas, ratos, morcegos e vendedoras de cosméticos, Fui chamado e essa pequena cidade onde nem se falava em tevê a cabo, quem dirá computador. Torneira era um artefato de alta tecnologia para eles. Sir Cunstance me contratou para exterminar uma praga que surgiu incontrolável, indestrutível, descontrolada: leporídeos. Mais conhecidos como coelhos e seus parentes (canguru não vale). Na manhã em que cheguei e fui recebido pessoalmente pelo meu novo patrão, percebi a gravidade da situação quando senti minhas calças sendo roídas em segundos por dois coelhos do tamanho de cachorros labradores. Entramos logo e ele me colocou ao par da esquisita situação. Os criadores de coelhos, pra baratear custos, misturaram uma erva que acharam nos campos ao norte, pertencentes a uma comunidade alienígena. O efeito colateral foi imediato e os coelhos desenvolveram cognição e o hipotálamo. Havia coelhos dirigindo kombis e táxis. Os ônibus eram dirigidos por fuinhas que, não se sabe como, foram afetadas, também. A população humana começou a dar o fora Carpanotown e ficaram poucos, somente porque tinham negócios com os coelhos e algumas fuinhas. Com hábitos humanos, os coelhos lotavam o único motel da cidadezinha e, não raro, satisfaziam-se em plena praça que, a essas alturas, estava sem uma folha pra contar a história. Sir Cunstance no outro dia escafedeu-se e me deixou com a batata - ou melhor - a cenoura quente na mão. Por uma questão de honra decidi ficar e encarar os orelhudos! Descobri que tinham um regime de gestão de maior pra menor. Os menores, claro, não estavam muito satisfeitos pois trabalhavam mais do que os maiores e os maiores ficavam com as melhores coelhas e cenouras. No final fui vencedor pois disseminei a discórdia entre eles e os convenci a fundar partidos e realizarem eleições democráticas. Agora espero, só pra ver com prazer, eles se matarem a cenouraços, enquanto extermino o restante do uísque do Cunstance, Tenho certeza que só restarão as fuinhas, sorrateiras e unidas. Beijinhus.

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Me prometeste a lua
e eis que ela chega
aos nossos mares
sangrando o breu

Te prometi um verso
e eis que ele chega
burlando os ares
singrando o sangue
que outros olhares
escureceu

Mas lua e verso
tão mera sorte
pousam e voam
numa inconstância
de vida e morte
como castigo
de Prometeu


quarta-feira, 23 de outubro de 2013

O RASTILHO
Hoje são os nossos jovens que estão morrendo na rua! Os filhos de nossa geração estão morrendo pelo crack cada vez mais cedo e são eles que caminham pela vida, como uma legião de infelizes. Mas, como todas as crianças da minha época, cresci vendo os moradores de rua como os velhos e desajustados da cidade. O álcool, a loucura e o abandono eram a mola mestra daqueles seres meio sem idade e sem história, embora fizessem parte de nossas vidas como personagens um tanto assustadores e completamente fora de nossos padrões de comportamento.
Em Cachoeira, uma das mais famosas de minha época era a Maria dos Cachorros. Tinha muitos vira-latas que a acompanhavam como um séquito e percorriam a cidade, de alto a baixo, arrecadando esmolas, quase em silêncio. Eu tinha muito medo dela, apesar dos cachorros, mas lembro de determinada época em que andava com uma criança de colo, empoleirada em sua cintura como uma bagagem sem peso nenhum. Depois de um tempo o filho sumiu e ouvi conversas, de meus esconderijos secretos, que teria morrido, pela fome ou pelas dificuldades. Depois disso aumentou tanto a quantidade de cachorros, como uma forma inconsciente de compensação, que o poder público tratou, enfim, de cuidar da vida dela. Como, prefiro não pensar!
Talvez pela criança que a acompanhava, sempre associo essa história a ela... Um dos cemitérios de Cachoeira era perto da minha casa e, bem pequena ainda, comecei a ouvir sussurros dos adultos a respeito de gemidos vindos de um dos túmulos. O medo tomou conta, pois sobravam curiosos que sempre tinham um complemento tétrico para as histórias e viam mortos se levantando a cada gemido, noites de sombras que erguiam suas garras em busca de virgens diáfanas e frágeis aventureiros. Os detalhes romanescos se somavam a cada suspiro do tempo e a cidade, durante vários dias, ficou em polvorosa! Até que corajosos agentes, saídos não sei de que departamento, resolveram enfrentar os fantasmas e suas origens funestas. E eis que, ao se armarem contra a morte, encontraram a vida envolta em trapos. Maria dos Cachorros (ou outro ser abandonado como ela) havia eleito o túmulo mais acolhedor para dar à luz e foram as dores do parto e o choro de seu bebê que trouxeram ao imaginário a multidão de mortos-vivos.
Podem ter mudado os seres que se destroem perambulando pelas cidades, mas uma coisa, mesmo quase sessenta anos depois, é imutável. O engano disseminado e a mentira, seu alter-ego, quando tomam o caminho das verdades, erguem suas garras em busca da credulidade. Como um longo rastilho de pólvora, brilha e irradia, até que os pedaços da vida voam sem volta pelo ar...

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Um poema
enquanto povoa
o castelo das idéias
é a semente da revolução
mesmo que apaziguado
pelas mais gentis
intenções de bonança

domingo, 20 de outubro de 2013


Essa sua experiência única no mundo da pesca é, na minha opinião, um dos mais hilários textos escritos pelo nosso Motta. Divirtam-se...

De Paulo Motta
A técnica do plantão furou meu dedo pra medir o HGT, índice de glicose. Está no padrão. Brabo é que furam meus dedos das mãos - são dez - e pareço um paliteiro, todo furado, mas não tem outro jeito. Lembro quando espetava meus dedos colocando iscas em anzóis, tentando me familiarizar com o esporte que meus colegas adoravam: pescaria. Pescaria e futebol foram duas coisas que bani de minha vida esportiva por pura incompetência. Tentei, assim como tentei fazer aqueles serviços que todo o homem faz em casa: pega a furadeira e esburaca as paredes pra colocar prateleiras, lava o carro no domingo, assiste o futebol depois dorme até começar o Fantástico. Mas cheguei a ir numa pescaria com meus amiguinhos, lá em São Borja. Conseguimos uma cabana dum amigo do pai do Pilly, arrumamos linhas, iscas, anzóis e um monte de tralhas pra pescaria, tudo emprestado. Ah, e dois garrafões de cachaça. Fomos na picape Chevrolet do Saquinho, que era lastimável, a direção amarrada com arame e os freios funcionavam na base do acaso. Lá fomos nós, em alegre e saltitante bando, uns sete doidos amontoados na picape infernal. Chegamos na cabana, na beira do Rio Uruguai, perto do anoitecer, e tínhamos que estacionar a camionete num barranco de frente pra parede lateral da cabana, pois a bosta não tinha arranque. A casa era super organizadinha, camas, três peças, banheiro na rua. Os garrafões de canha foram abertos e lá pelas oito da noite todos já falavam russo. Não tinha luz elétrica, só Liquinho e velas. O Léo fez um arroz com linguiça, comemos a gororoba e os caras acharam uma canoa num galpão e resolveram se lançar ao rio pra pescar. Acho que eu era o mais sóbrio da horda de bárbaros, quando vi uns quatro dentro daquela casquinha que eles chamavam de canoa, me deu um calafrio, juro! E sumiram na escuridão do rio aos gritos, como se fossem invadir a Noruega! Em seguida ouvi tiros vindos do mato. O Saquinho achou duas armas de caça, de cartuchos, ele e o Rogério Krigger estavam no mato caçando. Naquele breu iriam se matar, os desgraçados! E caçar o quê? Me enfiei na cabana e cochilei até acordar com a gritaria dos canoeiros, chegaram molhados como patos, a canoa emborcou com todos, quase morreram, perderam linhas, espinhéis, iscas artificiais, tudo emprestado. Mas Deus proteje os borrachos! Eram umas 4 da manhã, entraram todos numa algazarra e vá canha! O Pilly e o Saquinho estavam alucinados com as armas nas mãos, tanto que deram uns três tiros pro alto. Dentro da cabana. Abriu cada buraco no teto de se prestar a atenção! Pra encurtar o relato, pela manhã todos em pé, com cara de cataplasma fazendo o levantamento da esculhambação. Os buracos no teto não tinham conserto, as armas dava pra limpar, a canoa guardamos, então vamos embora. Aí vem a parte de empurrar a camionete no barranco pra dar arranque. Empurramos, a camionete desceu e pegou no tranco e se foi em direção à cabana do homem. Os freios nem tchuns. Pronto, derrubamos metade da parede da cabana! Azar, vambora! Chegamos em São Borja e somente dois dias depois começamos a dar explicações pra quem tinha nos emprestado alguma tralha! A cabana do cara tivemos que pagar o conserto e a minha tímida carreira de pescador terminou ali. Prefiro pescaria de quermesse. Tiaw!

sábado, 19 de outubro de 2013

Poemas de desamor 
de um passado remoto
...........

Tudo o que escrevi hoje foi brutal
porque me despeço de ti
em letras de sangue

Despeço-me 
porque não sei quem és 
criatura alada dos meus sonhos

Tudo o que escrevi hoje foi brutal
porque não sou mais a melodia de ternura
Sou um náufrago da vida
e na vida estavas tu e o meu amor
a me lançar num beco sem saída 

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

O ESQUELETO
Num ano emblemático, sentei junto aos despojos do Muro de Berlim. Era o início de 1990, em plena derrubada daquela estrutura medonha que havia dividido uma cidade ao meio, por conta da barganha dos vencedores da guerra. Era o início de 1990, eu tinha trinta e poucos anos, e saí por aí com uma mochila nas costas e a enorme sede de entender o mundo, além de meus próprios entraves internos. Albergues, casas de família e pequenos quartos em românticas águas-furtadas eram as moradias principais. Na maioria dos albergues e águas-furtadas, o banho diário não estava incluído no preço. Diziam que só os brasileiros, americanos e japoneses tomavam banho todo o dia e cobravam bem caro por esse "desperdício". Na Suíça tinha um chuveiro que funcionava com fichinha na porta, como nas máquinas de refri, e a cada ficha a água saía por um minuto. Isso exigia trabalho em equipe ou se terminava o banho ensaboada. 
Estávamos em 2 pessoas e havíamos feito o leasing de um carro, já aqui no Brasil, sistema mais barato que as passagens de trens. Depois de uma semana maravilhosa em Paris, subimos a Brugges e suas bicicletas e rendas, Bruxelas e Amsterdã, onde aconteciam as comemorações ao centenário da morte do Van Gogh. Ver quase que a totalidade de seus quadros e os milhares de estudos, que ficaram espalhados pela cidade, foi algo inesquecível. Depois descemos a Alemanha, vivenciado histórias e costumes, ziguezagueando aquele enorme país, até chegar à Suíça e à encantadora Cote D'Azir. Mas o que mais me marcou foi a lembrança preservada da guerra. Paris, Amsterdã e Berlim, principalmente Berlim, mantinham alguns prédios com lados destruídos e cobertos com vidro, para que a memória das gerações futuras não perdesse jamais a imagem do horror. O Muro, após o anúncio do fim das restrições, em 9 de novembro de 1989, começou a ser derrubado pelos próprios habitantes de Berlim, com marretas e mãos e pés, como se a opressão de quase trinta anos tivesse dado forças extras às famílias separadas brutalmente, numa cidade separada ao meio durante a madrugada de 1961 em que a barreira foi construída. Os caçadores de souvenirs também derrubaram grande parte, principalmente a parte mais ricamente grafitada, do lado ocidental. Eu trouxe muitos pedaços, a ponto de pagar excesso de bagagem, mas consegui distribuir aos amigos um pouco dos simbólicos ossos da guerra.
Numa de minhas inúmeras mudanças de casa, perdeu-se a minha pedra do Muro de Berlim. Era o esqueleto da intolerância que misturava seu DNA a pedras comuns do solo brasileiro. Um esqueleto de pernas, braços e memória que continuou a assombrar meus sonhos a cada gesto de opressão, a cada ato terrorista, a cada arma apontada, a cada injustiça contra as liberdades individuais, a cada mão que desiste do aceno e se perde na protegida cova de um bolso.

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

O BRINDE
O passado é um tesouro guardado. Lá estão os dois meses de cada verão em Arroio Teixeira como um marco, mas os anos em que nosso primo David foi junto com a turma tornaram meus dias especiais. Eu tinha alguém pra comandar nas brincadeiras, já que ele é quatro anos mais moço que eu e, principalmente, alguém pra fazer "o serviço sujo" nas piores peraltices.
Quando o sorvete de casquinha começou a ser vendido na praia, num dos hotéis distantes de nossa casa, repetiu-se logo o hábito festivo de irmos, em família, lambuzarmos as mãos e as roupas com aquele gelado divino. Lá conhecemos a "vaca-preta", mistura de coca-cola com sorvete e não a abandonamos mais. Virou vício! Queríamos vaca-preta todas as tardes e como não tínhamos quase nada de dinheiro, bolei um plano realmente engenhoso. Nas manhãs à beira da praia recolhíamos conchinhas de todas as cores e formas, que eram classificadas por tamanho e beleza. Após o almoço, ficando na retaguarda como guardiã das conchas, eu colocava o David, que tinha uns três ou quatro anos, a bater nas portas fechadas e oferecer nosso produto. E o negócio prosperou, pois ninguém tinha coragem de mandar embora aquela carinha linda, com as minúsculas mãos estendidas cheias de conchinhas. Fiz tabela das portas que batíamos, para que não se repetisse muitas vezes a mesma vítima. Com o dinheiro arrecadado, comprávamos a coca, íamos até a sorveteria, bem distante, e vínhamos correndo como uns pivetes malucos pela praia afora, com o sorvete descongelando nas mãos, até chegar em casa, onde a bebida era derramada num copo com o sorvete derretido. O clímax era a meteórica subida da mistura, como se fosse um brinde à nossa conquista. Nas vezes em que escorria pra fora do copo, nossas línguas agilmente salvavam aquele maravilhoso prêmio de perder-se em nossas roupas suadas. Isso repetiu-se muitas e muitas vezes, tendo nos propiciado novas invenções, cada vez com um refri e um sorvete de sabor diferente, até que nossa clientela começou a cansar de ser seduzida por um par de encantadores negociantes.
Hoje, mais de 50 anos depois, brindo ao silêncio, ao calor e a quietude. Brindo por respirar, sabendo que a falta de fôlego não foi em vão. E brindo à memória, que ainda me permite ser o que fui.
O passado é um tesouro guardado. Aberto, ele ameaça o sol com seu fulgor liberto e irradia, sem chance de retrocesso, a caminhada peguiçosamente acinzentada. Buscar o passado é viver de novo a imprevisível aventura de crescer.