quarta-feira, 5 de março de 2014

A PARTITURA
O canto e seu poder absoluto é um ato de comunicação que nasceu antes mesmo da palavra. É emoção transmitida que viaja no ar, às vezes como um furacão, às vezes como se fosse uma aragem, uma lufada de vida, um arrepio.
Eu quis ser cantora desde a adolescência. Compunha músicas e as apresentava em festivais, com alguns bons resultados, a ponto de encorajar-me a vôos mais altos. Por volta dos 30 anos comecei aulas de violão e colocação da voz, pois havia decidido cantar profissionalmente. Como o professor ia até minha casa à noite em duas vezes na semana, as aulas renderam e comecei a tocar e soltar a voz sem medo e com um ritmo mais apurado.
Ele era um violonista famoso e decidiu lançar-me como cantora, acompanhando-me com seu maravilhoso violão num show com músicas do Tom Jobim. Ia ser no espaço IAB, lugar cult da época. Vinha para os ensaios cada vez mais frequentes, regados a uísque - devo confessar - como se a música precisasse do tilintar do gelo no copo como insólita harmonia.
"Sabiá", "Demais", "Janelas Abertas", "Eu sei que vou te amar" e tantas outras voavam sozinhas pela sala apertada, quando comecei a notar certos olhares de encanto, que logo dobravam a esquina quando eu tentava decifrá-los. Até que um dia, no meio de um emocionado "Se todos fossem iguais a você", o professor, meu maestro de plantão declarou-se. Dizia-se apaixonado sem volta, e de uísque em uísque, a eternidade de seu amor aumentava mais. "Não vamos misturar as coisas!" pra cá, "Essa não é bem minha praia" pra lá, tentei afugentar suas intenções que me afastariam do foco principal, minha suposta carreira.
Uns dias mais se passaram, até que ele bateu à minha porta com a mala debaixo do braço e a expressão atormentada de menino perdido. "Me separei da minha mulher!", "vou para um hotel, porque só penso em ti, amor da minha vida" e tantas dessas palavras que cada um de nós, em algum momento da vida, já esgotou. Repeti toda a minha ladainha de negativas mas ele trazia novos motivos para que eu o aceitasse e novos copos para que ambos bebêssemos. No meio da noite venceu-me no cansaço! Eu estava sozinha depois de dolorosa separação e, de alguma forma, tal grande amor ninava-me o ego, tão covardemente massacrado.
De manhã, o uísque e a estranheza ainda me toldando o sono, quando o escuto levantar-se apavorado "Fiquei aqui! Minha mulher vai me matar!"
Eu ainda não havia me refeito do espanto e ele já recolhia o violão e a mala que se abriu pela pressa, espalhando, em vez de suas roupas para o retiro permanente no hotel, umas duas ou três partituras, muito surradas, como surradas eram as cantadas de seu repertório.
Não preciso dizer que as aulas terminaram e que o show não saiu. Minha carreira acabou no momento em que a maleta espalhou suas deslavadas mentiras pelo chão. Mas, por mais incrível que pareça, não me importei. Tão irrisória sua intenção que levou consigo o encanto da música compartilhada. Mas a partitura esparramada aos meus pés (ah, a partitura!) era a da inesquecível "Retrato em Branco e Preto", cujos segredos eu ainda não conhecia, e que virou-me as costas entrando na escuridão de sua mala, afastando-se para sempre, enfeitiçada pelas mãos do galante impostor...

sábado, 1 de março de 2014

O ABRE-ALAS
Era o meu primeiro baile de carnaval noturno. Ah, como demoraram a chegar aqueles dias de março, que gritariam ao mundo que aos 13 anos eu já podia fazer parte do seleto grupo de foliões entusiasmados. O carnaval tardio nos premiou com as quatro noites do Clube Comercial de Cachoeira e, acompanhada do Laurinho, meu mano guardião, debutei algum tipo de liberdade que não conhecia, a de testemunhar o universo adulto em ebulição.
Naquele ano foram anunciados dois concursos, o de fantasia e o do melhor folião. Como minha fantasia era simples, improvisada, ela não trazia em suas cores a menor esperança de se evidenciar, mas eu poderia ser a rainha das pistas com aquilo que - acreditava eu - trazia de melhor: a juventude, a energia e a alegria por estar finalmente ali. E dancei muito! "O teu cabelo não nega, mulata...", "olha a cabeleira do Zezé, será que ele é, será que ele é", "você pensa que cachaça é água..." ou a mais contundente "chegou a turma do funil, todo mundo bebe mas ninguém dorme no ponto...". Marchinhas politicamente incorretas mas que entoavam em nossos carnavais como verdades incontestáveis. Desde a primeira noite, um-dois, um-dois, dava voltas e voltas vertiginosas pelo salão, sempre pelo lado de fora, para ser notada pelos atentos jurados. Os braços eram como asas parecendo prontas a voar. E num esforço além daquela marcha desenfreada, criei uma coreografia com a cabeça, que subia e descia no ritmo da música, como numa concordância perene.
E assim se passaram quatro noites sem que eu as tivesse visto passar. Pelo incansável "allah-la-ô" e por ter deixado meus oito graus de óculos em casa, num ato de vaidade adolescente.
Chegou o final da última noite e eu era um fragmento do meu próprio corpo. A musculatura e a voz haviam dançado para outras searas e a única célula que me fazia respirar era a certeza da vitória. Mas sem que eu pudesse acreditar, a escolhida foi uma senhora muito idosa que havia ido às quatro noites, mas que mal sacudia os ombros, sempre sentada em seu lugar. Uma escolha emblemática de alguém que sempre havia contribuído para o carnaval cachoeirense em seus dias de glória.
De volta ao mundo que conhecia, por muito tempo engoli a decepção daquele carnaval. Ainda não sabia, mas para dentro de mim, cantando o abre-alas, marchava uma nova visão do mundo com sua faceta de cartas-marcadas. Minha coreografia de patinha esquisita perdeu a ilusão e o carnaval, que teria perdido de qualquer jeito, mesmo numa disputa justa. Muitas vezes ainda disputei, na época dos festivais de música, e mesmo com muitas vitórias senti na minha arte o poder dos conchavos.
Por isso, hoje, não remo contra a corrente para vencer um oceano que não é meu. Meu barco é uma serena nuvem de algodão, navegando de acordo com os ventos...

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Conto as estrelas
e as recolho em poemas
Conto os poemas
e os recolho em estrelas

Possam brilhar
quem sabe
no céu de algumas almas
que povoam como estrelas 
algum longínquo céu

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

domingo, 23 de fevereiro de 2014

A LUZ
Quando eu tinha vinte e poucos anos, meu coração parou de bater. Vinha atravessando alguns problemas neurológicos e o médico pediu uma angiografia cerebral para um melhor diagnóstico. Era um exame invasivo, com o uso de contrastes através de um cateter introduzido na carótida. Fui avisada de algum risco, mas nunca pensei no que isso significava até tudo acontecer.
Deitada em submissão completa, anestesia local com algum tipo de sedação leve, flutuava em nuvens embriagantes, falava confidências desconexas, enquanto agulhas, êmbolos, líquidos de todas as cores e mãos, muitas mãos flutuavam ao meu redor.
De repente, tudo começou a apitar. "Fibrilando, parada, parada cardíaca"... Vozes agitadas que me arrancaram as asas e me jogaram, de repente alerta, numa cama gelada. Muitos em volta, gente surgindo de não sei onde, estudantes de plantão tentando manusear máquinas e seringas, assustados com a responsabilidade. O médico, o neurocirurgião de plantão havia voltado pra casa! Os garotos a se revezarem em massagens cardíacas, que mais me pareciam socos. Doía a violência e eu queria afastá-los, mas não conseguia mandá-los parar. A voz, que antes havia sido tão eficiente em eloquentes discursos, agora negava-se a reclamar do desconforto. Não conseguia mexer um músculo, não conseguia falar, mas a mente escancarada para as sensações absorvia o tumulto ao redor. Era absolutamente incrível ouvi-los dizer que estavam me perdendo, quando uma lucidez arrebatadora era tudo que me restava. 
Não sei quantos minutos transcorreram mas foram vários, pois muita atividade se passou ao redor. E como música, de repente as máquinas voltaram ao seu sobe e desce. A vida, com absoluto poder, havia recomeçado a se movimentar. 
No dia seguinte, ao intimar o neuro-chefe, ele negou que tivesse saído da sala, embora não pudesse explicar por que meu peito estava todo roxo. Soube depois que fez uma reunião para saber quem dos presentes havia me contado a história.
Nunca mais falei no assunto, temendo a descrença. Anos depois, quando começaram a ser publicadas as experiências de quase-morte, continuei com esse segredo estocado entre tantos outros. Minha fajuta quase-morte era tão frágil de experiências que me envergonhava, como se quisesse ser incluída à força, no grupo dos dez mais. Não saí do corpo inerte, não vi as luzes aumentarem, não andei em túneis, não falei com meus queridos que se foram. Só fiquei ali, parada, deixando que lutassem heroicamente por minha vida, enquanto o cérebro retomava o rumo de uma consciência até então romântica sobre meu próprio corpo.
Seja por explicações espirituais, seja por explicações científicas, hoje se sabe que isso existe de várias formas, inclusive parecidas com a que vivi. Mas até hoje, passados quase quarenta anos, nunca estive com a vida tão nítida, como quando meu coração parou de bater. O cérebro deixou de ser um estrangeiro num corpo feito até então apenas de sentimentos e provou sua majestade, enquanto luz suprema. A partir daí, quem sabe, pude encetar um caminho desenhado em mente e coração, mesmo que para isso tenha precisado morrer ainda mais mil vezes, antes de finalmente entender quem sou.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

O ATROPELAMENTO
Eu tinha menos de dez anos e um entusiasmo de muito mais. Vidas e vidas de energia acumuladas em dias muito curtos, enfeitados com a emoção de descobrir que o mundo era meu, mas também de milhares de outros seres vivos além de mim própria e daqueles que povoavam minha imaginação.
As férias de julho, em contraponto aos meses de verão em Arroio Teixeira, onde vivíamos para reencontrar nossa liberdade, eram muito mais ricas em confraternizações com a família e amigos distantes. Dividia-me entre Santa Cruz, com os inúmeros primos Frantz e Porto Alegre, onde a Dida tinha suas amigas de infância. Lá na Capital conheci os bondes e a confeitaria Rocco. Fiquei sabendo que existiam casas no subsolo do subsolo dos edifícios. Conheci a escada rolante e os arranha-céus. Escutei pelas paredes que a única criança que vivia por lá era filha de mãe solteira, fator determinante da fuga da família pra Capital. Tudo era novo e eu olhava a cidade como se assistisse um cenário inusitado.
Num dia de calor em pleno julho, eu e a Dida saímos a passear no centro. Com o maior sorvete de casquinha que encontrei, seguia de mãos dadas a fotografar sensações com o coração, porque nele já morava então essa câmera que registra os pedaços de mundo, que nos formam como pessoas através da vida. Levava o sorvete enquanto captava tudo ao redor e, de repente, ele já não estava mais lá! Corria célere pela rua grudado na saia branca de uma bem-arrumada profissional a caminho do trabalho. Como numa reação em cadeia, enquanto me virava para acompanhar o destino daquela fujona bola gelada, atropelei alguém que vinha em sentido contrário. De um lado a saia branca onde já escorriam entusiásticos morangos e chocolates. No outro um idoso, vestido de preto, que girava em torno de si mesmo, como um Carlitos teleguiado pelo encontrão.
Dida me arrastou pela mão, o mais longe possível dos estragos e suas consequências. Não sei quando a dona da saia branca percebeu o dano. Se ainda na rua, ao gelar suas pernas, pela queda vertiginosa daquela cascada melada. Se em plena reunião de diretoria ao deixar tatuada na cadeira as lembranças de meu sorvete. Fugi sem saber. Assim como não soube como aquele velho Carlitos parou de rodar. Porque para mim, como numa foto amarelada, as cores geladas ainda escorregam pela saia branca e o paletó preto roda roda roda no meio-fio. 
O tempo, com seu galope inexorável, não conseguiu arrancar essas imagens engastadas na mente. Não conseguiu também arrancar aqueles borrões dolorosos que me resfriam os ossos, a cada lembrança. Mas mesmo assim, agradeço à vida ser o que fui. E agradeço à memória, que me permite a posse do hoje, com a delicadeza da contemplação.

sábado, 8 de fevereiro de 2014

Escuta
escuta agora
Há dez mil anos essa voz 
sussurra

Fica em silêncio
e escuta
Dentro de ti se agiganta
um poema

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014


Que as lanternas do sol
Iluminem palavras
de tal forma
que até as reticências 
brilhem

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

A BIBLIOTECA
Mosquitos são pequenos vilões. O calor os carrega em seus eflúvios como se fossem uma quadrilha de barítonos do mal. Lembro-me deles a entoarem minha infância, nos verões e invernos, indiscriminadamente. Penso que hoje, com sua cantoria politicamente incorreta por causa da dengue, diminuíram seu entusiasmo. Mas, há mais de 40 anos, as fêmeas desses terríveis monstros eram a sensação das noites entoadas, como num acalanto às avessas. Pareciam armadas com ferozes alfinetes, que nos cutucavam o rosto como se dissessem "acordem, acordem, ouçam nossas asas a cantar...".
Em casa, usávamos o Boa Noite, aquele incenso em caracol que empestava roupas, empestava cabelos, empestava os mosquitos que se escondiam, sabiamente, fora do alcance da fumaça mágica. Durava uma noite queimando e precisávamos usar todos os dias, fizesse calor ou fizesse frio.
Numa noite de inverno fui dormir enrolada num acolchoado - o ancestral do edredom. Ao lado, o Boa Noite a queimar como uma droga necessária, deixando meu sono tranquilo. Não lembro o que sonhava, como não lembro quem estava na casa, mas acordei de repente, no meio da noite, com o acolchoado em chamas vibrantes a colorir minha noite além de qualquer sonho. Em volta, um exército de mãos a puxar o fogo pra longe da cama, a jogar água, a abafar aquela tentativa de interrupção do meu destino. E eu, molhada, louca de frio, tonta de sono, a olhar minha finada coberta, que jazia queimada no meio do quarto.
Diz um antigo provérbio africano que "Quando um homem morre, é como se uma biblioteca inteira se incendiasse". Pois ali estavam todos, com suas armas improvisadas, salvando de um incêndio prematuro tudo aquilo que eu deixaria de ser. Esses livros que fui, esse livro que sou, esse caminho único que trilhei até aqui, com suas luzes e suas desordens, estaria irremediavelmente vazio.
Dos mosquitos, posso dizer que me abandonaram pela vida afora. Talvez, como os vampiros, tenham se exorcizado pelas labaredas que quase apagaram minhas páginas, no meio da vida.

domingo, 2 de fevereiro de 2014


Ah, mas que sol que nada
se a rosa nasceu alada 
e a cor ultrapassa o céu
qual véu de fogos em renda
rugindo o amor por pirraça
em silenciosa oferenda

sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

A VESTE
Era um domingo de inverno ensolarado. Domingo de brique, cinema e happy hour no Olaria. Havia ganho uma saia de lã marfim, abaixo do joelho, que completei com uma túnica e meia-calça vermelhas e a bota preta pra fechar o conjunto. Como se vestisse o mais requintado modelo Rui Spohr, sentia as ruas da Cidade Baixa como uma grande passarela ao meu dispor. Desfilava pela Joaquim Nabuco ou Lopo Gonçalves, normalmente calmas no início da tarde, caminhando e viajando pelos contornos de minha imaginação, quando o inesperado aconteceu. Muito além de qualquer pesadelo, a saia, aquela bela saia tubinho abriu seu fecho e escorregou até a calçada. Num instante, o que era pra ser um sonho de luxo explodiu em susto no ar. Em choque, olhando pra baixo, visualizei aquele amontoado de roupa em volta da bota e eu no meio como um mastro vermelho de uma bandeira arriada.
Ao redor, as ruas sossegadas me deram alívio e rapidamente tentei puxar de volta a saia pra seu lugar de origem, mas o fecho havia trancado na meia. Eis que então, num aterrador momento, ouvi garotos que saíam com uma bola do prédio em frente, a gritar incansavelmente, "a tia perdeu a saaaaia, a tia perdeu a saaaaia, a tia perdeu a saaaaia....." como um bordão interminável. Claro que apareceu mais gente, atraída pelo bando de guris, que esqueceram a bola em troca de um jogo mais inusitado.
Não sei como, voltei meus passos de volta à casa, mais vermelha que a meia que morria rasgada, num ato de fúria de um fecho traidor. Restou-me muito pouco do domingo de sol, muito pouco do traje elaborado, mas as risadas que pude dar quando passou a vergonha, as risadas que provoquei quando contei a aventura, valeram como uma veste de luz num tempo às vezes difícil. Essa luz que traja o rosto, essa luz que traja o peito e as esperanças surge como que por milagre, quando nos entregamos, sem volta, à magia de um riso feliz.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

O céu que espelha o mar
que espelha o céu
que espelha o mar
São ondas voando ao vento
São nuvens na areia ao relento
brincando de se espumar



A HERANÇA
Num dia de aniversário, ganhei o Crispim. Era um patinho minúsculo, com as penugens arrepiadas que acompanhavam o movimento dos ventos de outubro, sempre em busca de alguém para chamar de mãe. Primeiro grudou-se em meus movimentos, o que me obrigava a caminhar como se estivesse flanando, pois certamente onde o pé pretendia apoiar-se, lá estava aquela forma amarela antecipando meu passo. Depois de alguns dias mudou de lado e rendeu-se à curiosidade da Zizi, minha cachorra, que seguia nosso caminho com a persistência de um pesquisador. Ela, às vezes tão irritadiça, havia se apaixonado perdidamente pelo Crispim e sua profunda carência afetiva. Adotou-o como a um igual e o protegia dos gatos que rondavam excitados tão inusitado brinquedo. Ele dormia em sua barriga, como um filhote que havia terminado de mamar, e ela o lambia e catava bichinhos inexistentes, como a mais delicada mãe. Limpava suas sujeiras pela casa como faria se Crispim fosse um cãozinho aprendiz.
O tempo passou e o verão chegou, mas não lhes modificou o convívio. A penugem amarela foi-se transformando num mesclado de amarelo salpicado de cinza a evidenciar as belas asas pretas, que ainda se abriam quando corria pela casa atrás da Zizi. Transformou-se num enorme pato, um dos mais belos que já vi, mas nada conseguiu convencê-lo de que não era um filhotinho de cão. Continuava perseguindo a Zizi pela casa e ela, como boa mãe, tentava lhe dotar de um pouco de independência. Em vão. Quando a perdia, relembrava meus caminhos como vice-mãe e entoava seu chamado adolescente, sempre com as belas asas abertas, como se o afeto fosse impulsioná-lo a voar.
Quando chegou à idade adulta, adultos também ficaram seus excrementos, e eu já não contava com a ajuda da Zizi, embalada pelas emoções de seus próprios filhotes. Precisava levá-lo para viver no amplo pátio, mas doia pensar que ia sofrer pelo abandono. Foi então que decidi mostrar ao Crispim onde moravam as riquezas do fim do arco-íris. Comprei-lhe três patas adultas e larguei-o, completamente espantado, no meio de seu harém. E como eram desconhecidas as deusas da volúpia! Suas esposas, três megeras assumidas, guerreavam continuamente por seus favores, e o que era pra trazer alegria, transformou-se numa tortura incansável. Quando me via pelo pátio, pedia pra entrar, em busca de um pouco de sossego ou ia pra dentro da grande bacia que eu havia improvisado de laguinho.
Um ano depois, numa enchente que invadiu quase todas as casas em volta, precisei passar a noite recolhendo os bichos (gatos, cachorros, faisão, codornas, galinhas, coelhos) para a parte mais alta da casa, mas os patos haviam sumido. Pela manhã, no pátio transformado numa grande lagoa, aparece o Crispim, seguido por suas três mulheres, como se finalmente tivessem voltado pra casa. A partir de então, transformou-se no majestoso pato que era. Colocou ordem em sua casa e assumiu definitivamente seu lugar, como se aquele lago improvisado tivesse trazido de volta a herança esquecida.
Não durou muitos anos o Crispim. Foi-se num dia escaldante como hoje, de calor, de prazer ou de saudades daquele lugar do passado, onde dormia aconchegado aos pelos fartos de uma cachorra-mãe. Deixou-me suas furiosas viúvas que, sem os incansáveis favores sexuais a distraí-las, passaram suas vidas a atormentarem meus calcanhares. Mas deixou-me, mais que tudo, a certeza de que somos todos a herança e a circunstância, e é isso que nos faz essencialmente unos.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Esse teatro azulado
         com sua forma leviana 
ora fala de rostos
          de seres em luta insana
Ora desenha corpos
                 ora desvenda ossos
                 como se fosse um sudário
                 de uma oferenda profana



domingo, 26 de janeiro de 2014

A DESCOBERTA
Quando me aposentei pelos problemas dos olhos, caçaram minha carteira de motorista. Achei uma tremenda injustiça - com o carro - que há muito já andava sozinho, sem que eu precisasse demonstrar qualquer habilidade, visual ou motora.
Minha primeira conquista automotiva foi o Corcel I mais amarelo da cidade. A cor, que reluzia ao primeiro olhar, servia para tapar os quilos e quilos de massa branca dos buracos de ferrugem, que foram já reaparecendo antes do segundo ano. Mas naqueles primeiros dias brilhávamos ambos, ele por seu ouro e eu pela felicidade de ter conquistado os limites de um sonho, mais dourado do que o carro, e a sensação inusitada de fazer parte do mesmo lugar encantado de minha imaginação. Saíamos pela cidade a procurar conhecidos para que eu pudesse exibi-lo e, entre abanos e sorrisos, éramos chamados de "a clara e a gema"...
Num fim-de-semana de verão, resolvi visitar minha irmã e meu cunhado, que haviam comprado casa em Imbé, para apresentar o carro novo. Enquanto eu desbravava a freeway, com a emoção de uma pioneira, minha família e a de meu cunhado reunia-se para um churrasco festivo de sexta-feira à noite. Tinham um espaço grande no fundo do terreno, com churrasqueira, mesas e cadeiras e essa área de lazer era separada da casa por um belo pátio gramado. Quando cheguei, sentia-me como uma celebridade em sua limusine aberta, abanando para os mais ardorosos fãs. Entrei pelo corredor lateral até o pátio central buzinando meu exibicionismo e, num arroubo de entusiasmo, tirei as duas mãos do volante para os acenos iniciais. Daí pra frente começam, como que por encantamento, os feitos improváveis. O Corcel, não muito bom de geometria e alinhamento de rodas, virou um pouco forte demais e foi parar com todo o vigor no mais afastado canto do pátio. Ouve-se, no mesmo instante, um pavoroso barulho de implosão e o solo se abre aos meus pés. Bem ali, onde maciamente comecei a afundar, jazia agora insepulta a fossa da casa. Dejetos familiares e dejetos desconhecidos abraçaram meu carro, com um entusiasmo que ninguém havia demonstrado até então. As lajes que cobriam a fossa haviam quebrado com a força de meu ataque. 
Depois de um momento de choque inicial todos correram para acudir-me, mas o Corcel recusou-se a qualquer movimento. Quase a plantar bananeira, era um monumento brilhante no canto do pátio. Meu cunhado, seus primos, irmão, sobrinhos, todos os homens da casa afundaram naquele espaço incalculável, com alavancas e ferramentas, lutando contra a gravidade e contra as péssimas condições de trabalho. Não preciso dizer que o churrasco virou uma confusão. As mulheres tentando retardar o que já estava pronto e os homens, pobres eleitos, a tentar o quase-impossível salvamento.
Eu? Eu fiquei por solidariedade sentada à beira do buraco, com uma cerveja na mão, um pouco sem entender de onde vinham tantos olhares de esguelha, quando enfim eu havia descoberto onde ficava a perdida fossa da casa.

sábado, 25 de janeiro de 2014

Divino mar
que revigora as pérolas no olhar

Divino mar
que ao me sorrir suas luzes
redimensiona as cruzes
em rumos a tomar

Divino mar
com seu reinar constante
se a espuma é amante
que recua alheia
ao retornar
minha alma serpenteia






sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Estamos de volta! Nosso blog volta à vida depois de um tempo longo e involuntário. As palavras, livres como pássaros, reaprendem a voar. Que venham, enfim!
Volto a escrever uma vez mais
a me submeter uma vez mais
às palavras
aos receios
aos desmandos do papel

Volto a escrever
porque me envolvo
nessa imensidão de provas
de desmandos
de suores da emoção

Volto a escrever e já não sou mais só

Dorme comigo a voz que fala e sente
e sussurra a cada dia
quem eu sou

Às vezes escrevo com rima
pois encontrar a frase certa
abastece a auto-estima

Às vezes sou escrava de um soneto
pois ao chorar com métrica apurada
desmembro a queixa em carne e esqueleto
transformo a dor em forma equilibrada

Mas alívio é a sensação de liberdade
da idéia solta ao vento
É a sensação de transgredir
todas as regras

Seja com rima
seja com métrica
seja livre como quer
meu texto modernista
basta um suspiro apenas
que redima
o massacrado coração de artista

As margens do papel
são como a caixa dois
de idéias intrometidas

sábado, 28 de dezembro de 2013

Melhor permanecer calada...

Sao os pássaros
que conduzem a conversa
em efervescentes
cerimônias matinais

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

O SOL
Era pra ter sido o natal da desesperança. Era pra ter sido o natal das luzes apagadas e dos pensamentos sombrios. A mãe havia morrido há dois meses e era como se tivesse levado junto a capacidade do mundo acordar de manhã e rir simplesmente, pelo simples fato de existirem os dias e as noites, com sua riqueza profunda e seus ensinamentos. 
Eu tinha 5 anos, meus irmãos de 9 a 12 e, de repente, lá estava aquela enorme árvore, um pinheiro de verdade que encostava no teto, e lá estávamos nós a pendurar bolas de vidro colorido, que se refletiam em nossos olhos, trazendo de volta a cor que havia sumido sob os véus da tristeza. Na cozinha, a movimentação era intensa e, na tarde do dia 24, os pratos foram recheando a mesa de seus sabores e aromas a nos chamar à confraternização.
Num determinado momento tínhamos de sumir, não lembro bem pra onde, para que os presentes, milagrosamente, brotassem do chão em volta da árvore. Penso que, nessa época, já não acreditava no Papai Noel, pela delação de algum irmão maior. Mas, ao voltarmos, a árvore estava magicamente repleta de pacotes. Tinha um enorme, embaixo de todos, que atraiu nossos olhos ávidos, como se houvesse um fio invisível que poderia abrir o presente só com nossos olhares.
Chegaram nossos avós maternos, e com a Dida e o pai, sentamos em volta da árvore a espichar as mãozinhas a cada nome chamado, a rir e chorar com os desejos realizados, a rasgar os papéis com a sofreguidão gerada pela ansiedade. E então lá estava o maior pacote e era meu. Meu! Uma caixa enorme que se abriu ao mundo como se tivesse o poder de sanar todas as perdas. Dentro, a me devolver olhares, estava a maior boneca que eu já vi. Era quase do meu tamanho e enquanto lutava para tirá-la da caixa, os adultos nos enlaçaram com a emoção de uma ação que tinha valido a pena. Soube pela Dida, nos anos seguintes, que haviam juntado todas as economias para nos dar um natal diferente, que nos fizesse esquecer, por alguns instantes, que viver também podia ser um fardo.
Era pra ter sido o natal da desesperança. Mas aquela linda boneca, que acompanhou meu crescimento pela vida afora, foi meu mais inesquecível presente de natal, pois me ensinou que a generosidade é luz que irradia. Meus avós, o pai e a Dida haviam voado acima da nuvem negra pra nos buscar o sol e tinham conseguido reinventar, também para si mesmos, o quase perdido caminho da iluminação.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Pois não é o amor
e sua milagrosa química de sensações
que recheia nossos vãos internos
com o mais endiabrado coração?

domingo, 22 de dezembro de 2013


Dois belos textos sobre a alma desarrumada. Dois belos textos sobre a esperança de uma nova luz. Joice Bermann, com um belo poema e o Motta, que me comoveu muito em suas palavras "Que descuido o meu; abandonei-me, abandonei minha alma, deixei de lado o cuidado diário que minha casa precisa, corri o risco de me tornar mofado, cinzento, opaco."

De Joice Bermann 
Rasgue-se
O peito,
Arranque-se
As dores,
Os medos,
Os horrores.

E do rasgo
Fluam
Doces
Sonhos,
Esperança,
Acalantos,
Amores,
Cores.


De Paulo Motta
VAZIOS
Eu costumava chegar no jornal, lá em Caxias, cedo da manhã e passava pela cabine da telefonista, onde ficava conversando um pouco antes de ir para a minha sala.
Numa dessas vezes ela me olhou e disse: "Tudo bem, Motta? Parece que estás com a alma desarrumada!". Seus olhos leram a minha alma como nunca ninguém havia feito antes. Aquela moça, uma ilustre desconhecida, enxergou pela fresta da persiana da minha casa fechada e viu a mesa da sala com restos de um jantar inacabado, como se os convidados tivessem sido tragados pela noite escura sem terminar a refeição.
Alma desarrumada, alma desarrumada; demorei pra me recobrar da surpresa, como se tivesse sido flagrado cometendo algum delito, sabe? Colei na boca um sorriso inoportuno e continuei mergulhado na minha casa desarrumada, vazia mas bagunçada, quartos empoeirados com pouca luz e agora não dá pra ajeitar tudo, nem vou receber visitas, mas preciso dar um jeito nisso.
Se a menina não me avisa ficaria tudo nesse abandono que só vi agora.
Aos poucos fui trocando os lençóis, sacudindo os tapetes, esvaziando as latas descascadas das prateleiras e jogando um montão de remorsos e inseguranças no forno eterno do esquecimento, no lixo.
Tenho o péssimo hábito de colecionar saudades que, enfileiradas na janela, saltam no meu pescoço se, por descuido, passo muito perto. Ah, as saudades! Como me livrar delas sem que percebam? Fizemos um pacto, então: só apareçam quando chamadas, certo? Nem acreditei que concordaram, as danadinhas!
Abri as janelas, iluminando a cama enorme e nem lembrava da cadeira de balanço com encosto de vime ali no canto, que coisa!
Que descuido o meu; abandonei-me, abandonei minha alma, deixei de lado o cuidado diário que minha casa precisa, corri o risco de me tornar mofado, cinzento, opaco.
A partir disso procuro manter as coisas em ordem e limpas pra qualquer visita repentina - essas coisas acontecem quando tu estás de ressaca e com a barba por fazer - e sei que por mais que eu me prepare, as visitas à minha casa/alma são sempre inesperadas. Senão não teria graça, não é?
Boa noite.

sábado, 21 de dezembro de 2013

Pra não rebentar de inveja
quem nesse calor derrete
esse mar que aqui graceja
congela como sorvete


quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

A VAGA
Num dia de calor assim, ensolarado assim, eu consegui me atropelar. Essa façanha inconcebível provocou uma reação em cadeia e a quadra inteira recheou-se de feitos improváveis.
Tudo começou em Capão Novo, às 8 horas da manhã, num sábado de verão. Sempre gostei de ir ao supermercado cedinho, com o carro lotado de garrafas de cerveja - as latinhas ainda eram muito caras -, antes do movimento e da tradicional romaria à beira do mar. Enquanto organizava a lista tive a infeliz ideia de ligar o carro estacionado à frente de casa, para ir "esquentando", num tempo em que os primeiros motores a álcool sofriam com a ressaca noturna e nos negavam seu vigor. Era um Passat azul-petróleo, estalando de novo, e eu me sentei de lado no banco do motorista, com as pernas pra fora, pois pretendia ainda voltar pra dentro de casa. Sentei, puxei o afogador até a frente pra apressar o aquecimento...e virei a chave.
Num instante, num absoluto e miserável instante, o carro adquiriu vida própria pois, por um absurdo ato de patetice, o motor tinha ficado engatado - de ré - no dia anterior. Assim que ele corcoveou pra trás, derrubou-me do banco e fiquei presa pela porta, sendo arrastada por alguns segundos, antes que ele decidisse sua trajetória por cima de carros, postes, placas e paredes do condomínio. Eu fiquei ali atirada, toda esfolada e com o pé quebrado, literalmente na sarjeta, vendo minhas economias voarem ladeira abaixo. O Passat, sem porta e sem os vidros, dobrado ao meio, foi vencido por um viga mais potente da quina do edifício. Mas deixou derrotados três carros, dois postes, a placa de mármore do condomínio e um enorme pedaço de parede. Sobreviveram, galhardamente, doze garrafas vazias de cerveja, que rolaram lomba abaixo, como se quisessem escapar de toda a responsabilidade pelo prejuízo.
Era cedo e, misericordiosamente, não havia ninguém na rua. As pessoas começaram a aparecer nas janelas atraídas pelos estrondos pavorosos. Eu ali, triste figura na sarjeta, escuto os gritos de um desconhecido, na sacada de uma vizinha cujo marido trabalhava até as 10h. "Meu carro, meu carro"! O carro dele era um dos avariados pelo Passat e tinha ficado bem amassado. Acontece que, para compartilhar a noite solitária da minha vizinha, ele havia surrupiado o carro de um cunhado, irmão da mulher dele. "Meu carro, meu carro! O que eu vou dizer pra o meu cunhado? O que eu vou dizer pra minha mulher?". Nisso chega a Brigada e tenta convencê-lo a registrar a ocorrência, para ter direito ao meu seguro, mas ele se nega. "Deixa assim, deixa assim". Ainda de camisa aberta, sem os sapatos, sem o cinto, entra no carro avariado, que mesmo assim não nega fogo, e escapa lomba abaixo. No mesmo instante em que ele passa batido pelas fujonas garrafas de cerveja, o marido chega e estaciona na mesma vaga onde ele havia estado. "O que houve, o que houve, aconteceu alguma coisa com a minha mulher?"

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

E o guerreiro enfim se lança
como um morteiro febril
a comandar a festança
das loucas cores de anil

Cansou de abanar a trança
nessa dormência senil
e se apresenta na dança
como um parceiro gentil

Fosse um ás que nunca esquece
um funcionário-padrão
eu não teria a noção

Pois tudo que se esmaece
nunca volta como vela
mas um céu cheio de estrela 



terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Nada muito poético
me salta aos olhos
Metáforas
provérbios
verbos decassílabos
Nada
nada me surge
para sussurrar à mente

Talvez agora
de repente
a idéia das curvas sensíveis
do corpo amado

Mas isso não é poesia
É saudade
é falta
é um sem-querer de solidão 

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Que o veneno dos meus ais
permaneça em cova rasa

O silêncio é mais...

Roupa lavada
se suja em casa