sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

O ATROPELAMENTO
Eu tinha menos de dez anos e um entusiasmo de muito mais. Vidas e vidas de energia acumuladas em dias muito curtos, enfeitados com a emoção de descobrir que o mundo era meu, mas também de milhares de outros seres vivos além de mim própria e daqueles que povoavam minha imaginação.
As férias de julho, em contraponto aos meses de verão em Arroio Teixeira, onde vivíamos para reencontrar nossa liberdade, eram muito mais ricas em confraternizações com a família e amigos distantes. Dividia-me entre Santa Cruz, com os inúmeros primos Frantz e Porto Alegre, onde a Dida tinha suas amigas de infância. Lá na Capital conheci os bondes e a confeitaria Rocco. Fiquei sabendo que existiam casas no subsolo do subsolo dos edifícios. Conheci a escada rolante e os arranha-céus. Escutei pelas paredes que a única criança que vivia por lá era filha de mãe solteira, fator determinante da fuga da família pra Capital. Tudo era novo e eu olhava a cidade como se assistisse um cenário inusitado.
Num dia de calor em pleno julho, eu e a Dida saímos a passear no centro. Com o maior sorvete de casquinha que encontrei, seguia de mãos dadas a fotografar sensações com o coração, porque nele já morava então essa câmera que registra os pedaços de mundo, que nos formam como pessoas através da vida. Levava o sorvete enquanto captava tudo ao redor e, de repente, ele já não estava mais lá! Corria célere pela rua grudado na saia branca de uma bem-arrumada profissional a caminho do trabalho. Como numa reação em cadeia, enquanto me virava para acompanhar o destino daquela fujona bola gelada, atropelei alguém que vinha em sentido contrário. De um lado a saia branca onde já escorriam entusiásticos morangos e chocolates. No outro um idoso, vestido de preto, que girava em torno de si mesmo, como um Carlitos teleguiado pelo encontrão.
Dida me arrastou pela mão, o mais longe possível dos estragos e suas consequências. Não sei quando a dona da saia branca percebeu o dano. Se ainda na rua, ao gelar suas pernas, pela queda vertiginosa daquela cascada melada. Se em plena reunião de diretoria ao deixar tatuada na cadeira as lembranças de meu sorvete. Fugi sem saber. Assim como não soube como aquele velho Carlitos parou de rodar. Porque para mim, como numa foto amarelada, as cores geladas ainda escorregam pela saia branca e o paletó preto roda roda roda no meio-fio. 
O tempo, com seu galope inexorável, não conseguiu arrancar essas imagens engastadas na mente. Não conseguiu também arrancar aqueles borrões dolorosos que me resfriam os ossos, a cada lembrança. Mas mesmo assim, agradeço à vida ser o que fui. E agradeço à memória, que me permite a posse do hoje, com a delicadeza da contemplação.

Nenhum comentário:

Postar um comentário