segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

A BIBLIOTECA
Mosquitos são pequenos vilões. O calor os carrega em seus eflúvios como se fossem uma quadrilha de barítonos do mal. Lembro-me deles a entoarem minha infância, nos verões e invernos, indiscriminadamente. Penso que hoje, com sua cantoria politicamente incorreta por causa da dengue, diminuíram seu entusiasmo. Mas, há mais de 40 anos, as fêmeas desses terríveis monstros eram a sensação das noites entoadas, como num acalanto às avessas. Pareciam armadas com ferozes alfinetes, que nos cutucavam o rosto como se dissessem "acordem, acordem, ouçam nossas asas a cantar...".
Em casa, usávamos o Boa Noite, aquele incenso em caracol que empestava roupas, empestava cabelos, empestava os mosquitos que se escondiam, sabiamente, fora do alcance da fumaça mágica. Durava uma noite queimando e precisávamos usar todos os dias, fizesse calor ou fizesse frio.
Numa noite de inverno fui dormir enrolada num acolchoado - o ancestral do edredom. Ao lado, o Boa Noite a queimar como uma droga necessária, deixando meu sono tranquilo. Não lembro o que sonhava, como não lembro quem estava na casa, mas acordei de repente, no meio da noite, com o acolchoado em chamas vibrantes a colorir minha noite além de qualquer sonho. Em volta, um exército de mãos a puxar o fogo pra longe da cama, a jogar água, a abafar aquela tentativa de interrupção do meu destino. E eu, molhada, louca de frio, tonta de sono, a olhar minha finada coberta, que jazia queimada no meio do quarto.
Diz um antigo provérbio africano que "Quando um homem morre, é como se uma biblioteca inteira se incendiasse". Pois ali estavam todos, com suas armas improvisadas, salvando de um incêndio prematuro tudo aquilo que eu deixaria de ser. Esses livros que fui, esse livro que sou, esse caminho único que trilhei até aqui, com suas luzes e suas desordens, estaria irremediavelmente vazio.
Dos mosquitos, posso dizer que me abandonaram pela vida afora. Talvez, como os vampiros, tenham se exorcizado pelas labaredas que quase apagaram minhas páginas, no meio da vida.

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