sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Conto as estrelas
e as recolho em poemas
Conto os poemas
e os recolho em estrelas

Possam brilhar
quem sabe
no céu de algumas almas
que povoam como estrelas 
algum longínquo céu

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

domingo, 23 de fevereiro de 2014

A LUZ
Quando eu tinha vinte e poucos anos, meu coração parou de bater. Vinha atravessando alguns problemas neurológicos e o médico pediu uma angiografia cerebral para um melhor diagnóstico. Era um exame invasivo, com o uso de contrastes através de um cateter introduzido na carótida. Fui avisada de algum risco, mas nunca pensei no que isso significava até tudo acontecer.
Deitada em submissão completa, anestesia local com algum tipo de sedação leve, flutuava em nuvens embriagantes, falava confidências desconexas, enquanto agulhas, êmbolos, líquidos de todas as cores e mãos, muitas mãos flutuavam ao meu redor.
De repente, tudo começou a apitar. "Fibrilando, parada, parada cardíaca"... Vozes agitadas que me arrancaram as asas e me jogaram, de repente alerta, numa cama gelada. Muitos em volta, gente surgindo de não sei onde, estudantes de plantão tentando manusear máquinas e seringas, assustados com a responsabilidade. O médico, o neurocirurgião de plantão havia voltado pra casa! Os garotos a se revezarem em massagens cardíacas, que mais me pareciam socos. Doía a violência e eu queria afastá-los, mas não conseguia mandá-los parar. A voz, que antes havia sido tão eficiente em eloquentes discursos, agora negava-se a reclamar do desconforto. Não conseguia mexer um músculo, não conseguia falar, mas a mente escancarada para as sensações absorvia o tumulto ao redor. Era absolutamente incrível ouvi-los dizer que estavam me perdendo, quando uma lucidez arrebatadora era tudo que me restava. 
Não sei quantos minutos transcorreram mas foram vários, pois muita atividade se passou ao redor. E como música, de repente as máquinas voltaram ao seu sobe e desce. A vida, com absoluto poder, havia recomeçado a se movimentar. 
No dia seguinte, ao intimar o neuro-chefe, ele negou que tivesse saído da sala, embora não pudesse explicar por que meu peito estava todo roxo. Soube depois que fez uma reunião para saber quem dos presentes havia me contado a história.
Nunca mais falei no assunto, temendo a descrença. Anos depois, quando começaram a ser publicadas as experiências de quase-morte, continuei com esse segredo estocado entre tantos outros. Minha fajuta quase-morte era tão frágil de experiências que me envergonhava, como se quisesse ser incluída à força, no grupo dos dez mais. Não saí do corpo inerte, não vi as luzes aumentarem, não andei em túneis, não falei com meus queridos que se foram. Só fiquei ali, parada, deixando que lutassem heroicamente por minha vida, enquanto o cérebro retomava o rumo de uma consciência até então romântica sobre meu próprio corpo.
Seja por explicações espirituais, seja por explicações científicas, hoje se sabe que isso existe de várias formas, inclusive parecidas com a que vivi. Mas até hoje, passados quase quarenta anos, nunca estive com a vida tão nítida, como quando meu coração parou de bater. O cérebro deixou de ser um estrangeiro num corpo feito até então apenas de sentimentos e provou sua majestade, enquanto luz suprema. A partir daí, quem sabe, pude encetar um caminho desenhado em mente e coração, mesmo que para isso tenha precisado morrer ainda mais mil vezes, antes de finalmente entender quem sou.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

O ATROPELAMENTO
Eu tinha menos de dez anos e um entusiasmo de muito mais. Vidas e vidas de energia acumuladas em dias muito curtos, enfeitados com a emoção de descobrir que o mundo era meu, mas também de milhares de outros seres vivos além de mim própria e daqueles que povoavam minha imaginação.
As férias de julho, em contraponto aos meses de verão em Arroio Teixeira, onde vivíamos para reencontrar nossa liberdade, eram muito mais ricas em confraternizações com a família e amigos distantes. Dividia-me entre Santa Cruz, com os inúmeros primos Frantz e Porto Alegre, onde a Dida tinha suas amigas de infância. Lá na Capital conheci os bondes e a confeitaria Rocco. Fiquei sabendo que existiam casas no subsolo do subsolo dos edifícios. Conheci a escada rolante e os arranha-céus. Escutei pelas paredes que a única criança que vivia por lá era filha de mãe solteira, fator determinante da fuga da família pra Capital. Tudo era novo e eu olhava a cidade como se assistisse um cenário inusitado.
Num dia de calor em pleno julho, eu e a Dida saímos a passear no centro. Com o maior sorvete de casquinha que encontrei, seguia de mãos dadas a fotografar sensações com o coração, porque nele já morava então essa câmera que registra os pedaços de mundo, que nos formam como pessoas através da vida. Levava o sorvete enquanto captava tudo ao redor e, de repente, ele já não estava mais lá! Corria célere pela rua grudado na saia branca de uma bem-arrumada profissional a caminho do trabalho. Como numa reação em cadeia, enquanto me virava para acompanhar o destino daquela fujona bola gelada, atropelei alguém que vinha em sentido contrário. De um lado a saia branca onde já escorriam entusiásticos morangos e chocolates. No outro um idoso, vestido de preto, que girava em torno de si mesmo, como um Carlitos teleguiado pelo encontrão.
Dida me arrastou pela mão, o mais longe possível dos estragos e suas consequências. Não sei quando a dona da saia branca percebeu o dano. Se ainda na rua, ao gelar suas pernas, pela queda vertiginosa daquela cascada melada. Se em plena reunião de diretoria ao deixar tatuada na cadeira as lembranças de meu sorvete. Fugi sem saber. Assim como não soube como aquele velho Carlitos parou de rodar. Porque para mim, como numa foto amarelada, as cores geladas ainda escorregam pela saia branca e o paletó preto roda roda roda no meio-fio. 
O tempo, com seu galope inexorável, não conseguiu arrancar essas imagens engastadas na mente. Não conseguiu também arrancar aqueles borrões dolorosos que me resfriam os ossos, a cada lembrança. Mas mesmo assim, agradeço à vida ser o que fui. E agradeço à memória, que me permite a posse do hoje, com a delicadeza da contemplação.

sábado, 8 de fevereiro de 2014

Escuta
escuta agora
Há dez mil anos essa voz 
sussurra

Fica em silêncio
e escuta
Dentro de ti se agiganta
um poema

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014


Que as lanternas do sol
Iluminem palavras
de tal forma
que até as reticências 
brilhem

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

A BIBLIOTECA
Mosquitos são pequenos vilões. O calor os carrega em seus eflúvios como se fossem uma quadrilha de barítonos do mal. Lembro-me deles a entoarem minha infância, nos verões e invernos, indiscriminadamente. Penso que hoje, com sua cantoria politicamente incorreta por causa da dengue, diminuíram seu entusiasmo. Mas, há mais de 40 anos, as fêmeas desses terríveis monstros eram a sensação das noites entoadas, como num acalanto às avessas. Pareciam armadas com ferozes alfinetes, que nos cutucavam o rosto como se dissessem "acordem, acordem, ouçam nossas asas a cantar...".
Em casa, usávamos o Boa Noite, aquele incenso em caracol que empestava roupas, empestava cabelos, empestava os mosquitos que se escondiam, sabiamente, fora do alcance da fumaça mágica. Durava uma noite queimando e precisávamos usar todos os dias, fizesse calor ou fizesse frio.
Numa noite de inverno fui dormir enrolada num acolchoado - o ancestral do edredom. Ao lado, o Boa Noite a queimar como uma droga necessária, deixando meu sono tranquilo. Não lembro o que sonhava, como não lembro quem estava na casa, mas acordei de repente, no meio da noite, com o acolchoado em chamas vibrantes a colorir minha noite além de qualquer sonho. Em volta, um exército de mãos a puxar o fogo pra longe da cama, a jogar água, a abafar aquela tentativa de interrupção do meu destino. E eu, molhada, louca de frio, tonta de sono, a olhar minha finada coberta, que jazia queimada no meio do quarto.
Diz um antigo provérbio africano que "Quando um homem morre, é como se uma biblioteca inteira se incendiasse". Pois ali estavam todos, com suas armas improvisadas, salvando de um incêndio prematuro tudo aquilo que eu deixaria de ser. Esses livros que fui, esse livro que sou, esse caminho único que trilhei até aqui, com suas luzes e suas desordens, estaria irremediavelmente vazio.
Dos mosquitos, posso dizer que me abandonaram pela vida afora. Talvez, como os vampiros, tenham se exorcizado pelas labaredas que quase apagaram minhas páginas, no meio da vida.

domingo, 2 de fevereiro de 2014


Ah, mas que sol que nada
se a rosa nasceu alada 
e a cor ultrapassa o céu
qual véu de fogos em renda
rugindo o amor por pirraça
em silenciosa oferenda