O CASAMENTO
A mãe, uma artista de sentidos repletos de emoção, adorava música. Nos cinco anos em que convivi com ela, estive sempre rodeada de noturnos, sonatas e concertos, que me embalavam os sonhos como se Chopin, Bethoven ou Liszt estivessem ali, ao alcance das mãos.
A eletrola, elefante-branco que reproduzia sons, foi a grande aquisição da família, antes da era da televisão. Tinha o tamanho de um balcão de 1 metro de largura e era composto de toca-discos, rádio e auto-falante, reunidos num mesmo móvel que ornamentava a sala, como ornamentavam nossa vida os sons que dele saíam.
Todos os meses, quando recebia seu vencimento, como era chamado o dia do pagamento do salário de professora, a mãe trazia um disco novo pra casa. Era uma coleção mensal, muito bem gravada, com excelentes músicos e tinha uma característica irresistível. Vinha lacrada e só revelava seus segredos sonoros a quem apostava em seu escondido conteúdo. Com a curiosidade como maior propaganda, era uma coleção que desaparecia rapidamente das bancas. A mãe trazia o pacote inviolado e o abria na nossa frente, que reunidos em volta, saboreávamos a novidade. E o som, como se fosse volátil, se espalhava no ar para que o respirássemos.
Embalada nesse sonho, um dia ela comprou um piano. Quería-nos virtuoses a embalar seus dias. As manas logo foram para as aulas de música com a professora Alda Eggers e eu, como tinha só três anos, assistia fascinada. D. Alda era severa e exigia uma seriedade difícil de manter em meninas de oito, dez anos. Mas, a partir das escalas cansativamente repetidas pelas manas e espiando o que acontecia nas cordas dentro do piano, fui compreendendo a peculiaridade de cada uma daquelas teclas mágicas. Daí a querer experimentar as notas foi um passo. Tirei de ouvido "Atirei um pau no gato" e, como o miau final era uma oitava acima, eu ficava procurando a nota até que o ouvido a aprovasse. Quando apresentei a música pra D. Alda, ela ficou encantada. Sua turma de alunos tinha uma audição de piano naquele mês e ela resolveu encerrar as apresentações com aquele miau procurado na ponta do dedinho indicador. Ah, como me lembro daquele dia em que, pela primeira vez, tive contato com a arte. Todas as pessoas que bateram palmas, pela ousadia de uma garotinha de três anos em busca dos sons, não sabiam então que se iniciava um casamento indissolúvel. E que, quase sessenta anos depois, numa viagem de palavras, cores e sons, das pontas dos meus dedos ainda fugiriam ideias em frenética busca de ar.