domingo, 27 de outubro de 2013


Nosso Roubando Pérolas , hoje, traz uma das parábolas mais intrigantes do Paulo Motta. Surreal, mas profundamente lúcida, como tudo que o nosso amigo apresenta. E, no contraponto, o lirismo (ah, que saudades estávamos) do Eduardo. Delícias para esse domingo de sol...

De Eduardo Magrão Menezes
TEU BEIJO
Gosto
Do teu jeito de menina
E do quase fechar os olhos
Ao sorrires pra mim!

Gosto
Da levada menina
Disfarçada em anjo
Que encontrei em ti!

Amo
Morder com jeitinho
Teu lábio carnudo
Num beijo sem fim!

Ah...
Essa boca maldita
De fêmea bonita,
Me faz delirar...

Quero
Teu beijo molhado,
Teu corpo colado,
Teus olhos em mim.

Sou...
O amor que plantaste
Em meu peito carente!

Sou...
Poeta a deriva
Que no mar dos teus beijos...
Perdeu-se de amor!


De Paulo Motta
Na décima terceira badalada do sino da catedral de Carpanotown, salto do sofá e observo a bruxuleante claridade que se derrama, através da janela enorme que ornamenta a sala da mansão gótica de Sir Cunstance. Meu Deus, que ressaca! Pudera, há dois dias encho a cara com os uísques paraguaios de Cunstance, não sabia que sua decadência era tão decadente! Não há energia, só lampiões a gás e velas por todo o lugar. Trabalho com exterminação de pragas como baratas, ratos, morcegos e vendedoras de cosméticos, Fui chamado e essa pequena cidade onde nem se falava em tevê a cabo, quem dirá computador. Torneira era um artefato de alta tecnologia para eles. Sir Cunstance me contratou para exterminar uma praga que surgiu incontrolável, indestrutível, descontrolada: leporídeos. Mais conhecidos como coelhos e seus parentes (canguru não vale). Na manhã em que cheguei e fui recebido pessoalmente pelo meu novo patrão, percebi a gravidade da situação quando senti minhas calças sendo roídas em segundos por dois coelhos do tamanho de cachorros labradores. Entramos logo e ele me colocou ao par da esquisita situação. Os criadores de coelhos, pra baratear custos, misturaram uma erva que acharam nos campos ao norte, pertencentes a uma comunidade alienígena. O efeito colateral foi imediato e os coelhos desenvolveram cognição e o hipotálamo. Havia coelhos dirigindo kombis e táxis. Os ônibus eram dirigidos por fuinhas que, não se sabe como, foram afetadas, também. A população humana começou a dar o fora Carpanotown e ficaram poucos, somente porque tinham negócios com os coelhos e algumas fuinhas. Com hábitos humanos, os coelhos lotavam o único motel da cidadezinha e, não raro, satisfaziam-se em plena praça que, a essas alturas, estava sem uma folha pra contar a história. Sir Cunstance no outro dia escafedeu-se e me deixou com a batata - ou melhor - a cenoura quente na mão. Por uma questão de honra decidi ficar e encarar os orelhudos! Descobri que tinham um regime de gestão de maior pra menor. Os menores, claro, não estavam muito satisfeitos pois trabalhavam mais do que os maiores e os maiores ficavam com as melhores coelhas e cenouras. No final fui vencedor pois disseminei a discórdia entre eles e os convenci a fundar partidos e realizarem eleições democráticas. Agora espero, só pra ver com prazer, eles se matarem a cenouraços, enquanto extermino o restante do uísque do Cunstance, Tenho certeza que só restarão as fuinhas, sorrateiras e unidas. Beijinhus.

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Me prometeste a lua
e eis que ela chega
aos nossos mares
sangrando o breu

Te prometi um verso
e eis que ele chega
burlando os ares
singrando o sangue
que outros olhares
escureceu

Mas lua e verso
tão mera sorte
pousam e voam
numa inconstância
de vida e morte
como castigo
de Prometeu


quarta-feira, 23 de outubro de 2013

O RASTILHO
Hoje são os nossos jovens que estão morrendo na rua! Os filhos de nossa geração estão morrendo pelo crack cada vez mais cedo e são eles que caminham pela vida, como uma legião de infelizes. Mas, como todas as crianças da minha época, cresci vendo os moradores de rua como os velhos e desajustados da cidade. O álcool, a loucura e o abandono eram a mola mestra daqueles seres meio sem idade e sem história, embora fizessem parte de nossas vidas como personagens um tanto assustadores e completamente fora de nossos padrões de comportamento.
Em Cachoeira, uma das mais famosas de minha época era a Maria dos Cachorros. Tinha muitos vira-latas que a acompanhavam como um séquito e percorriam a cidade, de alto a baixo, arrecadando esmolas, quase em silêncio. Eu tinha muito medo dela, apesar dos cachorros, mas lembro de determinada época em que andava com uma criança de colo, empoleirada em sua cintura como uma bagagem sem peso nenhum. Depois de um tempo o filho sumiu e ouvi conversas, de meus esconderijos secretos, que teria morrido, pela fome ou pelas dificuldades. Depois disso aumentou tanto a quantidade de cachorros, como uma forma inconsciente de compensação, que o poder público tratou, enfim, de cuidar da vida dela. Como, prefiro não pensar!
Talvez pela criança que a acompanhava, sempre associo essa história a ela... Um dos cemitérios de Cachoeira era perto da minha casa e, bem pequena ainda, comecei a ouvir sussurros dos adultos a respeito de gemidos vindos de um dos túmulos. O medo tomou conta, pois sobravam curiosos que sempre tinham um complemento tétrico para as histórias e viam mortos se levantando a cada gemido, noites de sombras que erguiam suas garras em busca de virgens diáfanas e frágeis aventureiros. Os detalhes romanescos se somavam a cada suspiro do tempo e a cidade, durante vários dias, ficou em polvorosa! Até que corajosos agentes, saídos não sei de que departamento, resolveram enfrentar os fantasmas e suas origens funestas. E eis que, ao se armarem contra a morte, encontraram a vida envolta em trapos. Maria dos Cachorros (ou outro ser abandonado como ela) havia eleito o túmulo mais acolhedor para dar à luz e foram as dores do parto e o choro de seu bebê que trouxeram ao imaginário a multidão de mortos-vivos.
Podem ter mudado os seres que se destroem perambulando pelas cidades, mas uma coisa, mesmo quase sessenta anos depois, é imutável. O engano disseminado e a mentira, seu alter-ego, quando tomam o caminho das verdades, erguem suas garras em busca da credulidade. Como um longo rastilho de pólvora, brilha e irradia, até que os pedaços da vida voam sem volta pelo ar...

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Um poema
enquanto povoa
o castelo das idéias
é a semente da revolução
mesmo que apaziguado
pelas mais gentis
intenções de bonança

domingo, 20 de outubro de 2013


Essa sua experiência única no mundo da pesca é, na minha opinião, um dos mais hilários textos escritos pelo nosso Motta. Divirtam-se...

De Paulo Motta
A técnica do plantão furou meu dedo pra medir o HGT, índice de glicose. Está no padrão. Brabo é que furam meus dedos das mãos - são dez - e pareço um paliteiro, todo furado, mas não tem outro jeito. Lembro quando espetava meus dedos colocando iscas em anzóis, tentando me familiarizar com o esporte que meus colegas adoravam: pescaria. Pescaria e futebol foram duas coisas que bani de minha vida esportiva por pura incompetência. Tentei, assim como tentei fazer aqueles serviços que todo o homem faz em casa: pega a furadeira e esburaca as paredes pra colocar prateleiras, lava o carro no domingo, assiste o futebol depois dorme até começar o Fantástico. Mas cheguei a ir numa pescaria com meus amiguinhos, lá em São Borja. Conseguimos uma cabana dum amigo do pai do Pilly, arrumamos linhas, iscas, anzóis e um monte de tralhas pra pescaria, tudo emprestado. Ah, e dois garrafões de cachaça. Fomos na picape Chevrolet do Saquinho, que era lastimável, a direção amarrada com arame e os freios funcionavam na base do acaso. Lá fomos nós, em alegre e saltitante bando, uns sete doidos amontoados na picape infernal. Chegamos na cabana, na beira do Rio Uruguai, perto do anoitecer, e tínhamos que estacionar a camionete num barranco de frente pra parede lateral da cabana, pois a bosta não tinha arranque. A casa era super organizadinha, camas, três peças, banheiro na rua. Os garrafões de canha foram abertos e lá pelas oito da noite todos já falavam russo. Não tinha luz elétrica, só Liquinho e velas. O Léo fez um arroz com linguiça, comemos a gororoba e os caras acharam uma canoa num galpão e resolveram se lançar ao rio pra pescar. Acho que eu era o mais sóbrio da horda de bárbaros, quando vi uns quatro dentro daquela casquinha que eles chamavam de canoa, me deu um calafrio, juro! E sumiram na escuridão do rio aos gritos, como se fossem invadir a Noruega! Em seguida ouvi tiros vindos do mato. O Saquinho achou duas armas de caça, de cartuchos, ele e o Rogério Krigger estavam no mato caçando. Naquele breu iriam se matar, os desgraçados! E caçar o quê? Me enfiei na cabana e cochilei até acordar com a gritaria dos canoeiros, chegaram molhados como patos, a canoa emborcou com todos, quase morreram, perderam linhas, espinhéis, iscas artificiais, tudo emprestado. Mas Deus proteje os borrachos! Eram umas 4 da manhã, entraram todos numa algazarra e vá canha! O Pilly e o Saquinho estavam alucinados com as armas nas mãos, tanto que deram uns três tiros pro alto. Dentro da cabana. Abriu cada buraco no teto de se prestar a atenção! Pra encurtar o relato, pela manhã todos em pé, com cara de cataplasma fazendo o levantamento da esculhambação. Os buracos no teto não tinham conserto, as armas dava pra limpar, a canoa guardamos, então vamos embora. Aí vem a parte de empurrar a camionete no barranco pra dar arranque. Empurramos, a camionete desceu e pegou no tranco e se foi em direção à cabana do homem. Os freios nem tchuns. Pronto, derrubamos metade da parede da cabana! Azar, vambora! Chegamos em São Borja e somente dois dias depois começamos a dar explicações pra quem tinha nos emprestado alguma tralha! A cabana do cara tivemos que pagar o conserto e a minha tímida carreira de pescador terminou ali. Prefiro pescaria de quermesse. Tiaw!

sábado, 19 de outubro de 2013

Poemas de desamor 
de um passado remoto
...........

Tudo o que escrevi hoje foi brutal
porque me despeço de ti
em letras de sangue

Despeço-me 
porque não sei quem és 
criatura alada dos meus sonhos

Tudo o que escrevi hoje foi brutal
porque não sou mais a melodia de ternura
Sou um náufrago da vida
e na vida estavas tu e o meu amor
a me lançar num beco sem saída 

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

O ESQUELETO
Num ano emblemático, sentei junto aos despojos do Muro de Berlim. Era o início de 1990, em plena derrubada daquela estrutura medonha que havia dividido uma cidade ao meio, por conta da barganha dos vencedores da guerra. Era o início de 1990, eu tinha trinta e poucos anos, e saí por aí com uma mochila nas costas e a enorme sede de entender o mundo, além de meus próprios entraves internos. Albergues, casas de família e pequenos quartos em românticas águas-furtadas eram as moradias principais. Na maioria dos albergues e águas-furtadas, o banho diário não estava incluído no preço. Diziam que só os brasileiros, americanos e japoneses tomavam banho todo o dia e cobravam bem caro por esse "desperdício". Na Suíça tinha um chuveiro que funcionava com fichinha na porta, como nas máquinas de refri, e a cada ficha a água saía por um minuto. Isso exigia trabalho em equipe ou se terminava o banho ensaboada. 
Estávamos em 2 pessoas e havíamos feito o leasing de um carro, já aqui no Brasil, sistema mais barato que as passagens de trens. Depois de uma semana maravilhosa em Paris, subimos a Brugges e suas bicicletas e rendas, Bruxelas e Amsterdã, onde aconteciam as comemorações ao centenário da morte do Van Gogh. Ver quase que a totalidade de seus quadros e os milhares de estudos, que ficaram espalhados pela cidade, foi algo inesquecível. Depois descemos a Alemanha, vivenciado histórias e costumes, ziguezagueando aquele enorme país, até chegar à Suíça e à encantadora Cote D'Azir. Mas o que mais me marcou foi a lembrança preservada da guerra. Paris, Amsterdã e Berlim, principalmente Berlim, mantinham alguns prédios com lados destruídos e cobertos com vidro, para que a memória das gerações futuras não perdesse jamais a imagem do horror. O Muro, após o anúncio do fim das restrições, em 9 de novembro de 1989, começou a ser derrubado pelos próprios habitantes de Berlim, com marretas e mãos e pés, como se a opressão de quase trinta anos tivesse dado forças extras às famílias separadas brutalmente, numa cidade separada ao meio durante a madrugada de 1961 em que a barreira foi construída. Os caçadores de souvenirs também derrubaram grande parte, principalmente a parte mais ricamente grafitada, do lado ocidental. Eu trouxe muitos pedaços, a ponto de pagar excesso de bagagem, mas consegui distribuir aos amigos um pouco dos simbólicos ossos da guerra.
Numa de minhas inúmeras mudanças de casa, perdeu-se a minha pedra do Muro de Berlim. Era o esqueleto da intolerância que misturava seu DNA a pedras comuns do solo brasileiro. Um esqueleto de pernas, braços e memória que continuou a assombrar meus sonhos a cada gesto de opressão, a cada ato terrorista, a cada arma apontada, a cada injustiça contra as liberdades individuais, a cada mão que desiste do aceno e se perde na protegida cova de um bolso.

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

O BRINDE
O passado é um tesouro guardado. Lá estão os dois meses de cada verão em Arroio Teixeira como um marco, mas os anos em que nosso primo David foi junto com a turma tornaram meus dias especiais. Eu tinha alguém pra comandar nas brincadeiras, já que ele é quatro anos mais moço que eu e, principalmente, alguém pra fazer "o serviço sujo" nas piores peraltices.
Quando o sorvete de casquinha começou a ser vendido na praia, num dos hotéis distantes de nossa casa, repetiu-se logo o hábito festivo de irmos, em família, lambuzarmos as mãos e as roupas com aquele gelado divino. Lá conhecemos a "vaca-preta", mistura de coca-cola com sorvete e não a abandonamos mais. Virou vício! Queríamos vaca-preta todas as tardes e como não tínhamos quase nada de dinheiro, bolei um plano realmente engenhoso. Nas manhãs à beira da praia recolhíamos conchinhas de todas as cores e formas, que eram classificadas por tamanho e beleza. Após o almoço, ficando na retaguarda como guardiã das conchas, eu colocava o David, que tinha uns três ou quatro anos, a bater nas portas fechadas e oferecer nosso produto. E o negócio prosperou, pois ninguém tinha coragem de mandar embora aquela carinha linda, com as minúsculas mãos estendidas cheias de conchinhas. Fiz tabela das portas que batíamos, para que não se repetisse muitas vezes a mesma vítima. Com o dinheiro arrecadado, comprávamos a coca, íamos até a sorveteria, bem distante, e vínhamos correndo como uns pivetes malucos pela praia afora, com o sorvete descongelando nas mãos, até chegar em casa, onde a bebida era derramada num copo com o sorvete derretido. O clímax era a meteórica subida da mistura, como se fosse um brinde à nossa conquista. Nas vezes em que escorria pra fora do copo, nossas línguas agilmente salvavam aquele maravilhoso prêmio de perder-se em nossas roupas suadas. Isso repetiu-se muitas e muitas vezes, tendo nos propiciado novas invenções, cada vez com um refri e um sorvete de sabor diferente, até que nossa clientela começou a cansar de ser seduzida por um par de encantadores negociantes.
Hoje, mais de 50 anos depois, brindo ao silêncio, ao calor e a quietude. Brindo por respirar, sabendo que a falta de fôlego não foi em vão. E brindo à memória, que ainda me permite ser o que fui.
O passado é um tesouro guardado. Aberto, ele ameaça o sol com seu fulgor liberto e irradia, sem chance de retrocesso, a caminhada peguiçosamente acinzentada. Buscar o passado é viver de novo a imprevisível aventura de crescer. 

domingo, 13 de outubro de 2013

De seus tesouros, Paulo Motta trouxe de volta o "Repolho" e o "Amigo" e, com o poder da memória, eles passeiam à nossa volta como se fôssemos todos crianças numa encantada brincadeira de roda...

De Paulo Motta
Está passando um filme de uns chinchilas transgênicos que fazem misérias. Até falam! Coisas do Walt Disney. Lembrei do meu filho, o Lobinho, quando lhe dei um bichinho parecido, lá em São Borja. Na Pracinha da Lagoa, tinha um caminhão vendendo esses bichinhos. Ele ficou encantado - com seus seis anos - e batizou-o de Repolho. Levamos pro sítio, em Conde de Porto Alegre, uns 80 km de São Borja, onde passávamos parte das férias. Numa tarde percebi o Lobo muito ativo e silencioso, em seguida cavou um pequeno buraco e ali, enterrou um vidro tampado, com alguns bonecos do Kinder Ovo e outra pequenas bugigangas. À noite perguntei-lhe qual era o objetivo de enterrar aquilo, e ele: "Pai, ano que vem vou desenterrar o meu tesouro, fiz até um mapa, olha!". Voltamos, no outro ano e ele, de mapa em punho, desenterrou seu tesouro, e o Repolho sempre por perto, roendo alguma coisa. Aquilo me remeteu à infância - em São Borja - das matinés com troca de gibis e balas do João das Balas. Depois íamos pra casa brincar de agente secreto ou de Zorro. O quintal lá de casa era imenso, onde meu pai, o Beltrão, sisudo sargento do Exército, plantou pereiras, cáquis, mamoneiros, abacateiros, parecia uma selva, onde eu montava meu Forte Apache e o acampamento dos índios, preparava-os para a guerra de brinquedo em que os mocinhos soldados sempre ganhavam. Quase sinto o cheiro da terra úmida, quando eu escavava pra fazer um rio. Havia lugares nesse pátio, que era o meu mundo, cheio de musgos, por causa da umidade, e era legal fazer estradas pras carrocinhas dos pioneiros passarem e serem atacadas pelos índios. Meu cachorro vira-latas amarelo, o Amigo, pulava ao meu redor de orelhas em pé, entusiasmado com o movimento. Algumas rãs nos observavam dentre troncos meio apodrecidos, pareciam se divertir com a brincadeira. Anoitecia e chegava a hora do banho, sob protesto Um dia acordei em Porto Alegre, atrasado pro trabalho, com uma saudade profunda daqueles dias e me dei conta que ficaram pra trás. Meu cachorro, o Amigo, meu Forte Apache, meu pátio encantado e a minha infância. Mas tudo está guardado num porta-jóias empoeirado que, de vez em quando abro, pra ver se ainda estão ali, pra nunca esquecer da criança que fui. E acho que, de coração, sempre serei.

sábado, 12 de outubro de 2013

Ao Mig, com amor...
.......
O menino limpou a casa
de suas dissidências
O menino
com seus lírios espirituais
perfumou paredes empedradas

O menino chegou e partiu
mas não partiu seu riso reluzente

O menino
com seus olhos empapados de confiança
ajudou-me a conceber no peito
um flutuante coração rosado 


quinta-feira, 10 de outubro de 2013

O CAMINHO
Quando eu tinha 7 anos quis casar com Joselito. Por volta de 1960, estava no auge o cinema infantil espanhol, com Pablito Calvo e seu Marcelino Pão e Vinho, Marisol e Joselito. Todas as crianças da minha época haviam assistido O Rouxinol da Montanha e estavam completamente apaixonadas por Joselito. Perguntei pra o pai onde ficava a Espanha e, mesmo ele tendo atravessado o oceano com o dedo no mapa mundi, não me pareceu muito longe. Então, as crianças da quadra resolvemos encarar a distância e logo logo foi construído um carrinho de lomba, com a ajuda de algum irmão mais velho aventureiro.
E chegou o dia do casamento. Com minha melhor roupa e na companhia das rivais entusiasmadas, empreendemos viagem pela calçada afora, em direção ao insondável mundo do primeiro sonho de amor. E o carrinho de lomba, numa rua sem lombas, deu voltas e voltas e não chegamos nunca a lugar nenhum, além de nós mesmos e nossas paredes conhecidas. A Espanha continuou parada no mapa mundi, com sua minúscula configuração e seu encantamento inacessível.
Fui dormir imersa na dor da primeira decepção amorosa. Joselito era um deus de voz cristalina, que me decepcionou profundamente ao abdicar, sem saber, de um amor incondicional, porque um amor primeiro.
Nos dias seguintes, continuamos empreendendo viagens. Íamos cada vez mais longe e o mapa de Cachoeira foi completamente trilhado pela pequena turma casamenteira. Mas eu havia perdido a esperança. O que começou como um sonho de amor quebrou-se em distâncias inexplicáveis e naquilo que eu desconhecia sobre fatores absolutos. Mesmo nos anos 80, quando soube do envolvimento de Joselito com o tráfico de drogas, lembrava-me daquela longínqua dor. E já sabia, então, que a sensação de desamparo que as decepções nos deixam, não importa ontem, não importa hoje, alocam no caminho interior espaços de reflexão à espera de entusiasmos irreais, dimensionando de forma cristalina cada distância traçada com o dedo no mapa.

terça-feira, 8 de outubro de 2013

O ESPELHO
Esta é uma história que demorei pra contar. Pelo tom de distanciamento e crítica que procurava dar ao texto, tendo significado tanto para mim em emoção e ato, e pela sempre atual distorção entre o que é e o que parece ser. 
Era o ano de 1958, eu tinha 5 anos e a mãe acabava de morrer. Tinha saído de casa para trazer-nos um irmãozinho e não voltou ninguém. "Foram para o céu", disseram-nos com aquela explicação pronta que não explicava nada nem compensava coisa alguma. Fui tomada de uma raiva de tudo e todos e durante alguns meses sobraram socos e pontapés, até que me colocaram no jardim e a paciência dos professores daquela escola, mais o carinho da Dida e do pai, foram sossegando minha incompreensão.
Quase em frente à nossa casa morava uma família que observava o mundo de uma grande janela, com vidraças que se debruçavam diretamente na calçada. Eram negros e lembro-me de meninas de vários tamanhos e seus pais a circular atrás daqueles vidros enquanto eu colocava toda a energia pulsante em correrias pela rua, ainda sem muitos carros então. Num dia daqueles repletos de temporais internos, em que a emoção errática dominava meu pequeno corpo, uma das meninas olhava o mundo atrás do vidro, com sua mãe, como se minha agitação as alimentasse de um movimento pela cidade que o preconceito reinante impedia. Lembro-me de uma imagem tão bela, tão suave em suas cores desfocadas atrás do bafo da janela, que a raiva me assaltou de improviso e atirei-lhes a primeira pedra que encontrei. O mal, legando seus efeitos, quebrou o vidro em mil pedaços. Tudo virou um caos. A menina machucou o olho e minha família acabou envolvida. Meu pai, com sua sensibilidade, antes de qualquer coisa perguntou-me o porquê de tão grande malfeito. "Porque ela tinha mãe!", respondi de pronto. Fomos os dois até lá e os pais da menina durante horas nos acusaram de nazistas. A ameaça de denúncia ficou no ar, como a resposta a tantos anos de opressão que já haviam suportado. Mas o pai, além de assumir o meu erro e cobrir eventuais despesas, explicou-lhes o que estávamos atravessando na ocasião. Repetiu o que eu havia dito e, como eles eram também pessoas sensíveis, apaziguaram a gravidade de suas suspeitas. Acabamos ficando amigas, as meninas e eu, completamente alheias ao fato de que alguém, em algum lugar, achou por bem dividir as pessoas pela cor de sua pele.
Existem erros de circunstância e erros por crueldade. Esse foi um erro de circunstância que me jogou, com todas as implicações devastadoras, na realidade de atitudes preconceituosas e discriminatórias, que derivaram da secular e criminosa ideia do negro como escravo inferior e da distorção revanchista do pós-guerra, em ver cada olho azul e cada cabelo claro como uma imagem espelhada dos terríveis males de Hitler.

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

O sol entrou pela janela
com trajes de menina virgem
tão jovem suspiro de luz
tão cheio de espanto
ante as expressões de dor

O sol entrou pela porta
sem cerimônia
e me chamou sorrindo
de poema novo
me chamou de flor

O sol entrou em mim
como um facho
e perfumou-me as mãos 
de primavera

Quero pensar que o tempo
é aquele relógio estragado
no fundo da gaveta
parado
parado
parado no corpo
salvo das guerras
Parado enfim
num momento de fé

domingo, 6 de outubro de 2013


A pérola deste domingo é o comovente texto de nosso Mottinha, escrito no dia do meu aniversário...

De Paulo Motta
Clara Frantz, adorável amiga, de aniversário, feliz, em pleno uso da felicidade conquistada a duras penas. Esse é o momento em que descobrimos que viemos ao mundo pra sermos felizes, nos divertirmos e nos rodearmos de amigos, gatos e cachorros também, ele são nossos anjos, que nos entendem pelo olhar.
Maria Clara, o melhor desse hoje, do agora, é acordar pela manhã e repassar o que tens pela frente no dia: dar uma espiada no jardim, uma mesinha que só falta lixar e pintar, aqueles mosaicos começados na terça, um almoço natureba, uma cervejinha no final da tarde, entre amigos, e ser feliz.
O longo caminho percorrido até aí foi longo e muitas vezes espinhoso, mas ninguém disse que seria fácil, não é?
E melhor ainda, saber que foram benesses conquistadas por ti, ao longo desse tempo. É poder sentar, preguiçosamente, debaixo do cinamomo com uma latinha na mão e dizer: Está valendo a pena!
Feliz aniversário, minha boa amiga, brindemos em cálices de vida transbordantes de alegria!

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Esse ano enfim você SEsSENTA -
diz impiedosa minha identidade

E essa cadeira que formosa se apresenta
e conquistei talvez com algum estrago
tomo de assalto por uns bons dez anos
sem nem jantinha antes ou afago

E aqui eu fico e daqui ninguém me ausenta
até que rompa a fita de outros planos

Posso ceder então lugar pra quem mais venha
pois reavivam sonhos quando enfim SE TENTA
olhar pra o lado e ver que as esperanças
passeiam junto a nós feito crianças

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Meu primeiro soneto, aos 13 anos:
...............

SONETO DO EXÍLIO 
Preciso devassar o paraíso
sem rima previsível com sorriso
Afiançar talvez toda a bonança
e a remissão dos anos de esperança

Salvar-me de uma vez do labirinto
que me levou quem sabe a dor que sinto
e desse quase nada de abandono
a projetar um século de sono

Usando o dicionário como meta
posso letrar-me enfim como poeta
em busca da semântica escondida

Mas ai de mim! Só sei falar do exílio
que o coração buscou tal qual um filho
que parte da estação atrás da vida