segunda-feira, 14 de outubro de 2013

O BRINDE
O passado é um tesouro guardado. Lá estão os dois meses de cada verão em Arroio Teixeira como um marco, mas os anos em que nosso primo David foi junto com a turma tornaram meus dias especiais. Eu tinha alguém pra comandar nas brincadeiras, já que ele é quatro anos mais moço que eu e, principalmente, alguém pra fazer "o serviço sujo" nas piores peraltices.
Quando o sorvete de casquinha começou a ser vendido na praia, num dos hotéis distantes de nossa casa, repetiu-se logo o hábito festivo de irmos, em família, lambuzarmos as mãos e as roupas com aquele gelado divino. Lá conhecemos a "vaca-preta", mistura de coca-cola com sorvete e não a abandonamos mais. Virou vício! Queríamos vaca-preta todas as tardes e como não tínhamos quase nada de dinheiro, bolei um plano realmente engenhoso. Nas manhãs à beira da praia recolhíamos conchinhas de todas as cores e formas, que eram classificadas por tamanho e beleza. Após o almoço, ficando na retaguarda como guardiã das conchas, eu colocava o David, que tinha uns três ou quatro anos, a bater nas portas fechadas e oferecer nosso produto. E o negócio prosperou, pois ninguém tinha coragem de mandar embora aquela carinha linda, com as minúsculas mãos estendidas cheias de conchinhas. Fiz tabela das portas que batíamos, para que não se repetisse muitas vezes a mesma vítima. Com o dinheiro arrecadado, comprávamos a coca, íamos até a sorveteria, bem distante, e vínhamos correndo como uns pivetes malucos pela praia afora, com o sorvete descongelando nas mãos, até chegar em casa, onde a bebida era derramada num copo com o sorvete derretido. O clímax era a meteórica subida da mistura, como se fosse um brinde à nossa conquista. Nas vezes em que escorria pra fora do copo, nossas línguas agilmente salvavam aquele maravilhoso prêmio de perder-se em nossas roupas suadas. Isso repetiu-se muitas e muitas vezes, tendo nos propiciado novas invenções, cada vez com um refri e um sorvete de sabor diferente, até que nossa clientela começou a cansar de ser seduzida por um par de encantadores negociantes.
Hoje, mais de 50 anos depois, brindo ao silêncio, ao calor e a quietude. Brindo por respirar, sabendo que a falta de fôlego não foi em vão. E brindo à memória, que ainda me permite ser o que fui.
O passado é um tesouro guardado. Aberto, ele ameaça o sol com seu fulgor liberto e irradia, sem chance de retrocesso, a caminhada peguiçosamente acinzentada. Buscar o passado é viver de novo a imprevisível aventura de crescer. 

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