O ESQUELETO
Num ano emblemático, sentei junto aos despojos do Muro de Berlim. Era o início de 1990, em plena derrubada daquela estrutura medonha que havia dividido uma cidade ao meio, por conta da barganha dos vencedores da guerra. Era o início de 1990, eu tinha trinta e poucos anos, e saí por aí com uma mochila nas costas e a enorme sede de entender o mundo, além de meus próprios entraves internos. Albergues, casas de família e pequenos quartos em românticas águas-furtadas eram as moradias principais. Na maioria dos albergues e águas-furtadas, o banho diário não estava incluído no preço. Diziam que só os brasileiros, americanos e japoneses tomavam banho todo o dia e cobravam bem caro por esse "desperdício". Na Suíça tinha um chuveiro que funcionava com fichinha na porta, como nas máquinas de refri, e a cada ficha a água saía por um minuto. Isso exigia trabalho em equipe ou se terminava o banho ensaboada.
Estávamos em 2 pessoas e havíamos feito o leasing de um carro, já aqui no Brasil, sistema mais barato que as passagens de trens. Depois de uma semana maravilhosa em Paris, subimos a Brugges e suas bicicletas e rendas, Bruxelas e Amsterdã, onde aconteciam as comemorações ao centenário da morte do Van Gogh. Ver quase que a totalidade de seus quadros e os milhares de estudos, que ficaram espalhados pela cidade, foi algo inesquecível. Depois descemos a Alemanha, vivenciado histórias e costumes, ziguezagueando aquele enorme país, até chegar à Suíça e à encantadora Cote D'Azir. Mas o que mais me marcou foi a lembrança preservada da guerra. Paris, Amsterdã e Berlim, principalmente Berlim, mantinham alguns prédios com lados destruídos e cobertos com vidro, para que a memória das gerações futuras não perdesse jamais a imagem do horror. O Muro, após o anúncio do fim das restrições, em 9 de novembro de 1989, começou a ser derrubado pelos próprios habitantes de Berlim, com marretas e mãos e pés, como se a opressão de quase trinta anos tivesse dado forças extras às famílias separadas brutalmente, numa cidade separada ao meio durante a madrugada de 1961 em que a barreira foi construída. Os caçadores de souvenirs também derrubaram grande parte, principalmente a parte mais ricamente grafitada, do lado ocidental. Eu trouxe muitos pedaços, a ponto de pagar excesso de bagagem, mas consegui distribuir aos amigos um pouco dos simbólicos ossos da guerra.
Numa de minhas inúmeras mudanças de casa, perdeu-se a minha pedra do Muro de Berlim. Era o esqueleto da intolerância que misturava seu DNA a pedras comuns do solo brasileiro. Um esqueleto de pernas, braços e memória que continuou a assombrar meus sonhos a cada gesto de opressão, a cada ato terrorista, a cada arma apontada, a cada injustiça contra as liberdades individuais, a cada mão que desiste do aceno e se perde na protegida cova de um bolso.
Nenhum comentário:
Postar um comentário