terça-feira, 8 de outubro de 2013

O ESPELHO
Esta é uma história que demorei pra contar. Pelo tom de distanciamento e crítica que procurava dar ao texto, tendo significado tanto para mim em emoção e ato, e pela sempre atual distorção entre o que é e o que parece ser. 
Era o ano de 1958, eu tinha 5 anos e a mãe acabava de morrer. Tinha saído de casa para trazer-nos um irmãozinho e não voltou ninguém. "Foram para o céu", disseram-nos com aquela explicação pronta que não explicava nada nem compensava coisa alguma. Fui tomada de uma raiva de tudo e todos e durante alguns meses sobraram socos e pontapés, até que me colocaram no jardim e a paciência dos professores daquela escola, mais o carinho da Dida e do pai, foram sossegando minha incompreensão.
Quase em frente à nossa casa morava uma família que observava o mundo de uma grande janela, com vidraças que se debruçavam diretamente na calçada. Eram negros e lembro-me de meninas de vários tamanhos e seus pais a circular atrás daqueles vidros enquanto eu colocava toda a energia pulsante em correrias pela rua, ainda sem muitos carros então. Num dia daqueles repletos de temporais internos, em que a emoção errática dominava meu pequeno corpo, uma das meninas olhava o mundo atrás do vidro, com sua mãe, como se minha agitação as alimentasse de um movimento pela cidade que o preconceito reinante impedia. Lembro-me de uma imagem tão bela, tão suave em suas cores desfocadas atrás do bafo da janela, que a raiva me assaltou de improviso e atirei-lhes a primeira pedra que encontrei. O mal, legando seus efeitos, quebrou o vidro em mil pedaços. Tudo virou um caos. A menina machucou o olho e minha família acabou envolvida. Meu pai, com sua sensibilidade, antes de qualquer coisa perguntou-me o porquê de tão grande malfeito. "Porque ela tinha mãe!", respondi de pronto. Fomos os dois até lá e os pais da menina durante horas nos acusaram de nazistas. A ameaça de denúncia ficou no ar, como a resposta a tantos anos de opressão que já haviam suportado. Mas o pai, além de assumir o meu erro e cobrir eventuais despesas, explicou-lhes o que estávamos atravessando na ocasião. Repetiu o que eu havia dito e, como eles eram também pessoas sensíveis, apaziguaram a gravidade de suas suspeitas. Acabamos ficando amigas, as meninas e eu, completamente alheias ao fato de que alguém, em algum lugar, achou por bem dividir as pessoas pela cor de sua pele.
Existem erros de circunstância e erros por crueldade. Esse foi um erro de circunstância que me jogou, com todas as implicações devastadoras, na realidade de atitudes preconceituosas e discriminatórias, que derivaram da secular e criminosa ideia do negro como escravo inferior e da distorção revanchista do pós-guerra, em ver cada olho azul e cada cabelo claro como uma imagem espelhada dos terríveis males de Hitler.

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