segunda-feira, 30 de setembro de 2013

O FAROL
Num dia iluminado pelos sonhos realizados, ganhei um sapato de verniz. Era vermelho, como que encerado, e brilhava como um sol de meio-dia. E como era duro! A espessa tinta sobre o couro deixava o pé com a sofrível missão de nos conduzir em passeios importantes, com um pouco mais de elegância feminina, quase inexistente nas aventuras do dia-a-dia. Ganhei o sapato de verniz, era domingo e, de mãos dadas com o pai, saímos a inaugurá-lo pela cidade. Meu sorriso brilhava mais que o verniz e, a cada conhecido que encontrávamos, tratava de tirar alguma poeira do pé incandescente ou o coçava, na ilusão de disfarce.
Já estávamos a várias quadras da nossa casa e, mesmo com o sacrifício das bolhas que já se formavam, eu estava feliz. Tinha uns 8 anos, era magra como um palito e saltitava olhando pra todos os lados atrás de conhecidos pra quem exibir meu presente. A cidade estava trocando sua iluminação pública e tinham sido feitos, na beira das calçadas, buracos de mais de um metro de cumprimento e estreitos para encaixe dos novos postes. Eu vinha tão distraída que caí direto num dos buracos. Os braços abertos sobraram do lado de fora, o que me salvou, mas fiquei trancada no buraco por algum tempo, até que o pai, com a ajuda de passantes que alargaram a borda, conseguisse me esfolar até a calçada. Mas oh, tragédia! Na subida, enquanto me puxavam, caiu um dos sapatos no buraco. E não houve jeito de resgatá-lo naquele momento. Se até então eu vinha resistindo heroicamente, nesse momento abri o maior bocão de todos os tempos.
Voltei pra casa triste figura, esfolada, imunda, com um pé só de sapato, cheia de bolhas calçadas e descalçadas e num choro de ensurdecer. O pai, como sempre apaziguador, prometeu-me ir no outro dia antes das 7 da manhã, quando os homens iriam colocar os postes. E as 10 pras 7 estávamos lá! Para meus olhos, o inacessível sapato vermelho brilhava no buraco, como se as luzes da cidade já estivessem todas ligadas. E enquanto esperava, acocada na borda, em fiel vigília, não sabia ainda que estava aprendendo a não desistir dos sonhos, mesmo que as esquinas nos levem a caminhos obscuros. Estava aprendendo que nas mãos de quem nos ama brilha um farol a nos descrever os rumos disponíveis e como atravessá-los em paz.
Ali, consciente apenas de que ia unir novamente os pés dos meus sapatos de verniz, esperei os homens chegarem com as ferramentas apropriadas e pescarem, sem dificuldades, o solitário e meio embarreado pedaço do meu sonho quase desfeito.

domingo, 29 de setembro de 2013


Véspera de um novo amor ou liberdade? Eduardo e Motta nos falam sobre o estar-solteiro e, é claro, com o enfoque característico de cada um, que já aprendemos um pouco a conhecer...

De Eduardo Magrão Menezes

Ah... O amor...
Belo, lindo,
Apaixonante amor!

És alegria da vida!
Cor da flor,
Lua do céu,
Asas do beija-flor!

Amor rompido?
É tristeza passageira,
Pequena vida solteira,
Véspera de novo amor!

Os bons momentos
Ficarão no peito.
Sou assim...
Não tem jeito!

Está agora livre
Pra amar, meu coração...
Que procura nova musa
Pra servir de inspiração!

Prometo amor e carinho
Lealdade, dedicação
Pra quem trouxer alegria
Ao meu velho coração!

De Paulo Motta
Continuando as comemorações do Dia do Solteiro - e da Solteira - começou, hoje, a Oficina da Solteirice, que lhes ensinará como degustar momentos deliciosos como acordar às duas da manhã e passar naquele boteco que serve um bife mal-passado, com dois ovos de pato, também mal-passados, e uma cerveja Pérola inigualável, sem ter que passar por uma inquisição do tipo: "Onde tu vai a essa hora? Quem é a lambisgóia que tu vai atrás? Vou contigo! Ah, tá, vai comer bife às duas da manhã! Me conta que eu gosto!". Haverá aulas de administração doméstica, orientando sobre faxina e como se desfazer de lençóis imundos sem ter que lavá-los. Para quais instituições doá-los e onde comprar mais barato outros novos. Descobrirás os milagres operados pelos detergentes poderosos, no seu banheiro com limo, e como fazer um documentário com os moluscos exóticos do seu banheiro, e vendê-lo pro National Geographic. Às 23h, um monólogo balzeado em Balzac, será interpretado pela Henriqueta Brieba. A entrada é franca para casais. Um dos pontos altos da Oficina será fazer a bainha da calça com grampeador e transformar cuecas usadas em delicados porta-sabonetes e recipientes para experiências escolares com feijão. Beber água direto na jarra da geladeira requer prática e habilidade, que lhes será ensinado, também. E a conscientização dos benefícios da solteirice - ou solteirismo, como chamam alguns ornitólogos - e um deles é não se preocupar em deixar o celular sempre à vista, sob severa vigilãncia, pois não terá ninguém pra furungar nele e perguntar: "Quem é essa Gaby Kiss?". Nem ninguém pra controlar o tempo de duração das garrafas de goró, no barzinho da sala. Beijão pra todos.

sábado, 28 de setembro de 2013

Quero colar meu verso na janela
para que enfim você me veja bela

Mas você não anda de ônibus...

Quem sabe então
eu cole do lado de fora
E fique a sonhar 
com a hora
um sinal fechado
você olhe pra o lado
e me escute falar

..........
Realizado para o 
Poemas no Ônibus
- edição 2005

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Os últimos nunca serão os primeiros
Não existe chegada
para os que avançam em absorção
daquilo que contemplam
Existe um estado de ser
de permanecer até as últimas conseqüências
de sua caminhada

Porque viver
viver em plenitude
é muito mais que a meia dúzia de passos
nessa desenfreada guerra até a linha

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

A CELEBRIDADE
Meu primeiro emprego foi aos 7 anos. Era secretária do programa de auditório "Nossos filhos se divertem", transmitido pela Rádio Cachoeira em cada domingo de manhã, criação de José Schneider Filho, o seu Schneider, que foi diretor da Rádio por mais de 30 anos e revolucionou o conceito de participação do público no interior, com programas de calouros, shows e rádio-teatro ao vivo. A Rádio Cachoeira foi chamada de "A Escola do Rádio" pelos valores que descobriu e até hoje enriquecem o jornalismo nacional.
O programa "Nossos filhos se divertem" lotava um auditório de entusiasmadas crianças, principalmente pelo quadro "Histórias que a Vovó Conta", com a vovó Olga Bandeira. Eu ajudava o seu Schneider na apresentação dos convidados ou alcançando os papéis com os nomes dos presentes no auditório, para sorteio de brindes, missão extremamente complicada pois invariavelmente eu misturava tudo ou perdia algum papel importante e tinha de ficar ajoelhada procurando. Adorava a função e me sentia o máximo. Durante a semana seguia o colégio e as aventuras, como qualquer criança, mas domingo a vida era um espetáculo à parte. Por isso, ficar sem o programa era o pior castigo que podia haver. Dependendo do grau da peraltice era um ou mais domingos de proibição.
Numa brincadeira absurdamente perigosa com meu primo David, quatro anos mais moço que eu, jogávamos uma pedra e o outro tinha de pegar e a jogar de volta. Como ele era muito pequeno, raramente conseguia aparar e numa dessas vezes a pedra o atingiu diretamente, causando-lhe um corte que levou pontos e até hoje, cinqüenta anos depois, ainda está tatuado em sua testa. Claro que fiquei muitos domingos sem poder ir ao programa e quando voltei o seu Schneider perguntou, ao vivo e em frente a todo o auditório, por onde eu andava. Respondi alto e bom som: "estava de castigo!". Tive de contar o motivo e ele aproveitou para distribuir conselhos às crianças que assistiam o programa. E a cidade inteira ligava o rádio domingo de manhã! Transformei-me, repentinamente, numa celebridade às avessas, como exemplo de crime e castigo adaptados à nossa idade e a cada vez que era impedida de ir ao programa, precisava contar ao vivo o motivo da sentença.
Não sei bem quando tudo terminou, se perdi o interesse ou cansou-me essa exposição que eu mesma havia criado. Mas quando penso naqueles tempos, vem-me sempre à memória a magricela loirinha no palco dizendo que esteve de castigo, sem ter noção de que alguém, em algum lugar da cidade, pode ter desviado a rota de caminhos obscuros, em função das palavras do seu Schneider, que derivaram do mais inocente ato de espontaneidade.

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Se o sinal esteve fechado pra nós
que éramos tão jovens
a maturidade abre cancelas
em nossos caminhos internos

E como é essencial o passo 
que nos leva à consciência
de que as mais fabulosas batalhas
são as que acontecem 
dentro de nossas vontades

terça-feira, 24 de setembro de 2013

O ESTRANGEIRO
Passar alguns dias em Floripa lembrou-me os dois anos em que morei lá, no início da década de 90. Mudei-me com mala, cuia e bicharada, para montar um camping na praia de Armação do Pântano do Sul, na ilusão de que a sensação de férias permanente ia vencer todas as dificuldades e a constante ebulição de minhas emoções. Mas em 91 ainda venciam as promessas e meu primeiro aniversário lá, em outubro, foi inesquecível. A aventura começou cedo, com uma caminhada até a Praia da Solidão, que naquela época era ligada ao Pântano do Sul por uma trilha. O dia estava lindo e o chão forrado de folhas formava um tecido xadrez. Acima o arvoredo quase intocado e à frente o mar, sereno mar a retocar meus desejos com o melhor presságio. A nota triste era a quantidade de pingüins mortos à beira da praia. Mas de repente, um quase imperceptível movimento acima de meu acampamento e lá estava um pingüim com um leve tremor, como se a vida demorasse em se despedir. Tinha um enorme machucado nas costas, mas respirava, e o meu passeio terminou ali. Voltei pra casa com a cesta de piquenique intocada, mas decidida a trancar as forças restantes em seu corpo até que pudesse ser ajudado. Mas não havia ninguém para ajudar. Liguei para o Ibama, para as secretarias do meio ambiente da Prefeitura e do Estado, para o correspondente catarinense ao Ceclimar, e nada. Ninguém estava disponível. O veterinário perto levou medo, então resolvi usar toda a minha experiência com meus bichos. Dei anti-inflamatório, antibiótico, limpava o ferimento com soro e colocava rifocina. Para alimentá-lo, o sistema GA (goela abaixo): soro caseiro e peixe passado no liqüidificador, bem aguado, várias vezes por dia. Uma semana depois ele acordou e levou outra para ficar em pé. Nessas alturas eu já havia feito amizade com os pescadores e ia até a praia esperá-los pelas seis horas da manhã, de onde vinha lotada de peixinhos para o cardápio do pingüim. 
Mas Floripa começou a arder de calor e precisei tomar medidas extremas. Desocupei o freezer e coloquei-o a morar lá. Ligava e desligava e deixava a porta aberta para que ele pudesse sair quando quisesse. Quando não estava dormindo - no freezer - ele seguia meus passos pelo terreno como um pintinho em busca da mãe. Era um espetáculo à parte vê-lo sair de sua casa e ficar de bico aberto esperando os peixinhos que, rapidamente, desapareciam de sua boca. Ficou alguns meses comigo, até crescer um pouco e fortalecer-se para enfrentar as correntes marítimas. E chegou o triste dia em que meus amigos pescadores puderam levá-lo até alto mar, num futuro incerto, mas seu de direito.
O freezer voltou ao seu papel de gelar bebidas, mas já não era a mesma máquina. Eram paredes protetoras que albergaram uma existência quase encerrada e não a deixaram ir. Assim somos nós, quando nos perdemos como estrangeiros no meio da vida. Um simples aceno basta para que se vislumbre, mais uma vez, a luz encantada do caminho de casa.

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

De sua boca sedenta
a planta deixa escorrer 
o suco da estação


Quem somos nós a invocar as cores
como se a primavera quedasse cativa
em torres de nuvens pesadas?
Quem somos nós se as donas do dia
se lambuzam de afortunada atividade?

domingo, 22 de setembro de 2013

"Despejando água na cuia, lembramos nossas cascatas, que são véu de noiva das matas"... Esse é o Eduardo e sua parceria com a palavra, numa homenagem ao 20 de setembro. E sobre a palavra nos falam Gilnei Lima e Paulo Motta. A palavra e seu poder. Em nós que a tocamos e a quem tocamos com o que foi dito...

De Eduardo Magrão Menezes


BANDEIRA GAÚCHA NA MÃO

O orgulho de ser gaúcho
Vivendo Brasil afora
Não é desfilar bombacha
Andar de bota e espora

Seja qual for o estado

Desta grande nação
O gaúcho é reconhecido
Pela cuia em sua mão

É símbolo de amizade

A roda de chimarrão
Contando causos gaudérios
E a cuia de mão em mão

Na roda lembrando o pago

Saudando o amado torrão
Erguemos a cuia ao céu
Homenagem ao nosso rincão

Da farroupilha nação

É a cuia segunda bandeira
Onde a erva representa
Verdes campos da fronteira

E se o amargo é topetudo

Formando um monte bacana
Com certeza é homenagem
À linda região serrana

Bomba de prata e ouro

Cravejada de rubi
Fala das nossas riquezas
E do sangue guarani

Despejando água na cuia

Lembramos nossas cascatas
Que são destaques no turismo
Ou véu de noiva das matas

Fora do nosso Brasil

Em estrangeira nação
Se identifica um gaúcho
Pela cuia do chimarrão

Ela representa orgulho

De nascer neste torrão
O pedaço mais amado
Do Brasil, nossa união

Então te aprochega vivente

Vem provar um chimarrão
É o doce amargo que sorvo
Cultuando a tradição

20 de setembro de 2013


De Gilnei Lima


Sergius Gonzaga PUBLICOU UM TEXTO MARAVILHOSO QUE FALA SOBRE O AMOR À LITERATURA. Minha modesta reflexão para o querido amigo Sergius. 
.............
Hoje se me perguntam por que amo a literatura, posso responder: Ela é que me ama e eu correspondo. É uma caso antigo. Irremediável. Começou quando aprendi as primeiras letras desenhadas, logo depois que decodificava nas primeiras balbucias de leituras a espécie de encantamento. 

Lia muito mal minhas primeiras palavras escritas. A literatura me respeita e me afaga. Me elogia, mesmo que meus escritos sejam feios, sem nexo ou sem respeito às regras gramaticais. Me incentiva dizendo: Não ligue se alguém criticar; os críticos, em sua maioria, são invejosos e tomados de um ressentimento encoberto. Escreva, escreva e escreva. 

O meu segredo é ser literal, literalmente. Aceito todas as palavras em ordem ou desordem. Não te recolho o papel, quando escreves às avessas do regramento imposto pela academia. Mas talvez, mesmo que se tenha todo o respeito pelo esforço dos acadêmicos, lembraremos a eles que a literatura é livre, solta e sem forma definida, tal como o ar. 

Todo o literato, aquele que escreve, respira. Então o ar é mais imprescindível para a literatura do que regras gramaticais e ortográficas. 

Tudo que desejo desse meu amor por ti e, que sei ser correspondida, é que nunca me abandones, mesmo que seja escrever uma linha, poucas palavras que contenham o sentido mais puro dessa paixão. Escrevo por que preciso, e leio por ser Narciso.


De Paulo Motta
Sabe quando a tua cabeça fervilha como se algo quisesse saltar pra fora dela, só que não encontra o caminho certo num labirinto sem esquinas, todo redondo feito um espiral infinito, até que esse algo, essa coisa que percorre curvas em altíssima velocidade, encontra uma fenda extemporânea e nasce, escoando pelos dedos e tomando conta dos teclados! É uma sensação quase celestial, orgásmica, delirante! Descubro isso a cada dia que passa e me torno dependente de escrever.
Nem sabia que poderia escrever coisa com algum sentido pros outros. Escrevia pra mim, como se fosse uma pia transbordante que tu abre o ralo e a água escoa. E, pra quem não me conhece, sou exatamente esse celeiro de bobagens e anarquia verbal. Me considero um bobo alegre e não vejo isso como uma coisa má, perniciosa, apenas um sujeito que gosta de rir com os amigos, sejam eles virtuais ou não!
Aliás, perniciosas seriam pernas femininas deliciosas e perigosas, pernas que locomovem quadris curvilíneos em suave bambolear, em perfeito compasso com os seios cinzelados por Michelângelo Buonarroti. Ombros cobertos por revolta cachoeira negra, que acompanha a suavidade dos movimentos do pescoço em minha direção. Os olhos, de uma noite profunda, sob sobrancelhas espessas de ancestrais mouros, me levam a sonhos impossíveis e irreais!
Acordo com a plantonista: "Tá na hora do remedinho do Paulinhooo!", eu quase respondo: "Vai tomar no cuuu-uuu!". Mas não posso, é uma questão de postura diplomática!
Boa noite a todos, sonhem com um final de semana maravilhoso, nos vemos na missa das 07:30h, tá bom?

sábado, 21 de setembro de 2013

A poesia está capenga
sem as madressilvas

Em nada me reconheço
nessa lenga-lenga
de panfletos libertários

Que posso fazer
se a taça de sossego que ofereço
retorna transbordante do teu frio
e eu estremeço
bem mais que ao frio da madrugada
na lágrima da noite congelada

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

OS TICINCO
Ainda não fiz um texto sobre a Dida, irmã de meu avô materno! A Dida como protagonista que foi de toda a minha formação, com seu afeto e proteção, junto à sabedoria e delicadeza do pai para orientar. Nos textos que já escrevi ela sempre tem estado presente, mas como uma lufada de ar num dia de verão e não como o próprio verão que foi.
Se chamava Emerita e apesar de sua solteirice juramentada nasceu para ser mãe e abraçou a maternidade com a competência de alguém orientado por fios divinos, em escolhas espirituais que não se explica mas, por vezes, se compreende em pessoas especiais. Nasceu em 1901 e era a filha mais moça de sua família, raspa-de-tacho como se dizia então, e tratava seus irmãos com a deferência destinada a senhores mais velhos. Ajudou a criar minha mãe e seus irmãos. E eram tão apegados que - contava sempre - quando a mãe casou com o pai, assustada com a perspectiva de um sexo misterioso, queria que a Dida a acompanhasse na lua-de-mel. E quando nasceu minha irmã, um ano depois, foi ela que a batizou, de Emerita transformando-se em Dinda e de Dinda em Dida, quase instantaneamente. E foi como Dida, na família e na cidade inteira, que se perpetuou.
Quando a mãe começou a sentir que a vida se esvaía, confiou seus quatro filhos a ela. A mãe partiu e a Dida, com o coração em pedaços, abafou seus soluços para nos compensar. Mudou-se com sua malinha de lona e a máquina de costura e passou a morar conosco, dormindo comigo, que era muito pequena e muito assustada. A demonstração do carinho entre todos nós sempre foi muito fácil e isso devemos àqueles braços que nos abrigavam o tempo todo, provando que o afeto é a mola-propulsora das boas intenções. Cuidou de nossas roupas, nosso alimento, nossas amizades. Brincava, quando fazíamos alguma peraltice: "Deus não dá filhos e o diabo dá sobrinhos!" Quando começamos a partir para nossas andanças, fazia potes de roscas que chamava de "mariquitas" e enchia as despensas de nossas casas.
Usou o mesmo corte de cabelo pela vida afora, fazia suas roupas - e as nossas também - com a simplicidade que a época difícil exigia, mas tinha uma vaidade inviolável: nunca falou sua idade! A cada aniversário respondia invariavelmente que tinha "ticinco". E os ticinco repetiram-se vida afora, sem que pudéssemos ver seus documentos e comprovar o tamanho dos ticinco. Tinha poucos cabelos brancos e a idade era indecifrável. Só ficamos sabendo quando aposentou-se compulsoriamente, aos 70 anos, e desfez-se o mistério.
Atravessou uma vida longa, 90 anos, perdidos os últimos para o Alzheimer. Mas na maior parte de sua caminhada não viveu para si própria em nenhum momento. Viveu para os filhos que lhe foram surgindo pelas perdas e pelas necessidades e foi uma das melhores mães que conheci. Quando alguém na família, primos, tios, irmãos, faz aniversário, muitas vezes o ticinco é lembrado, trazendo de volta a Dida, como que por magia, num comovente vôo espiritual em nosso mais profundo céu interior.

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Suaves murmúrios
atravessam a noite
apoiados em nossos lençóis

Murmúrios do inconsciente
a interferir nas escolhas do dia
e a limitar nossos projetos
a meras consequências

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Ninguém me avisou
que havia uma curva
no meio dos meus planos

Ninguém me avisou
do emaranhado dessas curvas
e quanto custaria o sobressalto

Hoje 
ficaram pedaços amassados por botas
a ornamentar palavras biográficas

Hoje
restou um grão ressuscitado
que afunda em curvas
como se fossem rendas do espírito
a filtrar certeza e imprevisão
quietude e alvoroço
sombra e corpo que a projeta

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Entre o grito e a morte
cabe um século

Entre o grito e a agonia
junto a tropeços
sorrisos e palavras
reside incontrolável
a embriagadora chama

Entre esse piscar
esse piscar de vida
cabe a imensurável
e acalentadora
força de um abraço

domingo, 15 de setembro de 2013


Hoje, dia 15 de setembro, meu dindo e tio David, pai do Eduardo, faz 80 anos. Ele é nossa pérola de hoje! Dedico-lhe, com amor, esse pedaço da minha memória.

O TREM 
Remexer em nossa história mais remota é uma aventura de valor tão inestimável quando foi vivê-la. É conseguir montar um quebra-cabeças que às vezes perdeu peças importantes, emaranhadas em dias por vezes negros que nos obrigamos a atravessar. É recuperar perdas, trazê-las de volta ao nosso redor, acarinhá-las, sentir seus cheiros, escutar ruídos, ser tudo de novo e compreender, finalmente, com os olhos da maturidade, aquele desenho grandioso que brota de nossas recordações. Das aventuras em Arroio Teixeira, deixei uma para contar hoje, dia em que meu dindo e tio David Menezes faz 80 anos de história e estou aqui, perto dele, para reviver seus traços e sua alegria. 
Em alguns anos de nossas férias, viajou conosco para a praia o filho mais velho do tio, o Davizinho, quatro anos mais moço que eu. Foram, como sempre, muitas aventuras mas, final de fevereiro, era hora de voltar. Saíamos cedo, almoçávamos em Porto Alegre, depois mais um ônibus até Cachoeira, para chegada à tardinha. Pois naquele dia o ônibus se acidentou. O motorista perdeu a direção e despencou num barranco, a meu ver interminável. Sem ferimentos a não ser o pânico daquele momento, atolamos em um lugar de difícil acesso, invisível da estrada. Era uma época sem telefones e precisou quase que o resto do dia para que o motorista conseguisse mandar o aviso pra empresa em busca de outro ônibus. Ficamos o dia lá e os lanches que levávamos foram se terminando. Já era noite quando chegamos em Porto Alegre e estava perdido o ônibus de conexão. O dinheiro, que seria para o almoço do familião, precisou ser usado nas passagens de trem, única chance de chegarmos a Cachoeira, numa viagem até a madrugada. Foi-se o dinheiro, foi-se o almoço, a janta, os lanches e sobrou uma turma de adolescentes e crianças esfomeadas. Davizinho e eu devíamos ter 5 e 9 anos e, antes de embarcarmos, fomos alertados que não tinha como comprar comida. Salvou-nos um sacolão de abacaxi que havia vindo para a vó e, a cada vez que passava um vendedor de lanches pelo trem e olhávamos mudos de fome, era dividido um abacaxi em rodelas. Como o tio foi avisado eu não lembro, mas quando chegamos na estação no meio da madrugada, lá estava sua alegria nos esperando e o alívio, ah, o alívio estampado no rosto. Esperou-nos com uma mesa tão recheada de pães, frios, patês, geléias, na qual nos atiramos como náufragos numa ilha cheia de luz. Lá estava meu dindo e tio David, na ponta da mesa e, naquele momento, ele era o pai de todos, a nos alimentar e acarinhar, com seus enormes braços protetores. Hoje estou em Floripa e desde ontem estamos festejando seus 80 anos. Hoje já partiu o pai para sua viagem ao infinito, já partiu a Dida, já partiu o mano Laurinho e as crianças tem novas histórias pra viver. Hoje, ao nos reunirmos nessa enorme mesa-redonda familiar, sinto que esse trem demorou uma vida pra chegar e sinto, ao olhar seu rosto na ponta da mesa, quão enorme era a fome que eu sentia de seu carinho e de sua risada espalhada no ar.

sábado, 14 de setembro de 2013

Sabe-se lá
aonde foram as rimas
Sabe-se lá onde se esconderam
as primas evoluções de nossa coragem

Mas um amigo sabe...

E um amigo sabe
pelas manifestações de sua imagem
que nos aproximam de um sentido mais claro
porque fomos também o que ele é
A mesma ponta partilhada
o mesmo mergulho em risos e lágrimas
a mesma ressaca
de mudar o mundo numa noite
e na manhã seguinte
acordar num mundo de ontem

Se um amigo tem um teto
construído de uma luxuriante 
embriaguez de coragem
nos obrigamos também a encontrá-la 

Porque onde mora a coragem
moramos todos nós
que nascemos da mesma mãe
do mesmo pai
naquele lugar do passado
onde morávamos todos
nos faltassem pernas nos faltassem braços
germinados de uma enorme e inesquecível
liberdade interior

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Eu também quero que o mundo inteiro
se sinta feliz
Mas não possuo milagres
além de cobrir alguns espaços
com uma melodia suave

Se puderes ouvir
escuta
Podemos sossegar juntos
nesse mar de palavras
e estarei em paz
porque ao menos 
em algum instante da vida
construí teu sorriso

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

O OVO DA SERPENTE
Quando eu tinha uns 8 anos, entre brincadeiras com os gatos, bonecas de vestir (de papel, quem lembra?) e carrinhos do mano, ouço uma conversa de que a Casa da Criança de Cachoeira estava pedindo donativos. Fundada em 44, era um orfanato mantido pelas Irmãs do Sagrado Coração de Jesus, com professores cedidos pelo município. Pois ao ouvir os planos de mandar roupas e brinquedos nossos pras crianças, fiquei pensando que ninguém havia lembrado de mandar balas, meu mais maravilhoso sonho de consumo, e resolvi ajudar. Meu único bem era a coleção de revistas em quadrinhos (Luluzinha, Mandrake, Capitão Marvel...) Resolvi vendê-las para comprar as ditas balas. Minha casa tinha um degrauzinho de uns cinco centímetros, no alicerce, que se prestava para a base onde as revistas ficariam em pé. Um prego em cada ponta da parede e um cordão de fora a fora completavam a banca. Acho que devia estar em férias, pois passei o dia ali, e vi minhas preciosas revistas irem embora impiedosamente, ao menor afago, ao mais ímpio olhar de sedução, sem um esvoaçar de folhas sequer... Penso que deviam estar custando bem menos do que valiam, pois o movimento foi intenso e logo logo aquela banca de uns dez metros, com revistas de início amontoadas, foi ficando vazia. O ponto alto foi quando o prefeito da época, Moacyr da Cunha Rösing, veio escolher suas revistas, com a importância de um freguês em uma joalheria.
Computados os ganhos, deu pra comprar um sacão de balas, acho que de cinco, dez quilos, não lembro bem. E ele era tão grande, tão tentador para meus olhos infantis, que não resisti a furar uma pontinha e pegar algumas balas. Pensava, insidiosamente, que merecia aquelas balas, pois havia cedido minhas preciosas revistas. Era o espírito da propina que se insinuava em minhas ações diárias, sem que eu entendesse, no momento em que tive o poder sobre aquelas balas e aquelas crianças. Claro que os adultos perceberam o furo e a lição de moral correu solta. O pai, com sua sabedoria, falou-me em integridade e desprendimento, sem nunca deixar que minha vergonha suplantasse o fato de que a intenção era boa. No outro dia fomos levar o presente até a Casa da Criança e deliciei-me ao vê-los me rodear, enquanto distribuía as balas. Por um instante mágico fui um pouco mãe daquelas mãos estendidas. Tudo o mais perdeu a importância a não ser os apaziguados sorrisos porque, ao me fazer devolver as balas, falando no verdadeiro sentido da generosidade, o pai estava destruindo para sempre, em seu ninho mais obscuro, o ovo da serpente. 

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Se levo uma pedra de gelo pelas costas
não sobrevive a pedra
mas sobrevivem os pedaços do espelho
que moravam nas costas
e refletiam tuas boas intenções 

Por isso
cuidado com tua pontaria
mesmo ao brincar com dardos inconseqüentes 
Ela pode ferir a forma como me habitas
daqui pra frente

terça-feira, 10 de setembro de 2013

O CARDÁPIO
Meu irmão Lauro (Laurinho pra todos nós) partiu aos 60 anos. Era meu irmão de idade mais próxima, menos de 5 anos de diferença, mas o suficiente para que tomasse ares de deus protetor daquela curiosa e insaciável irmã menor. Na praia, brincávamos com seus carrinhos, ganhos no natal, em vias expressas construídas debaixo da casa, que se erguia sobre pedras altas para que não apodrecesse com a umidade. Foi ele que protegeu minha virgindade nas festas de Cachoeira, sempre de olho nas danças e namoros, até que apaixonou-se e deixou-me em paz para seguir meu rumo.
Quando garoto foi ser escoteiro. Eu achava aquilo o máximo. Acampar, dormir em barracas, construir mesas e bancos com toras e cipós, como pioneiros, era um sonho inimaginável. Eu babava com as histórias e pra que eu parasse de encher seu saco, resolveu reproduzir o mundo escotista no quintal de nossa casa. Cortou galhos, amarrou-os em tripés com cordas, pregou tábuas em cima e estavam improvisados os bancos. Eu ajudei em cada etapa, como se estivesse construindo a casa dos meus sonhos. Depois construiu o fogão, enjambrado em pedras, arames e latas, que serviriam de panela. O problema é que só sabia fazer arroz, então catamos na cozinha alguns tomates e estava feito o nosso almoço. Fiel a nós dois estava meu gatinho da época, Veludo eu acho, assistindo a preparação. Claro que o arroz empapou! Mas Laurinho, Veludo e eu comemos o melhor arroz com tomate de nossas vidas... À noite, diante de panos amarrados em árvores, para que dormíssemos embaixo, refuguei o acampamento e voltamos todos, inclusive o Veludo, pra nossas caminhas macias. Muitas vezes repetimos o cardápio e o Laurinho jamais aprendeu a fazer arroz, mas alimentou-me o gosto pela terra e pelas coisas simples. E quando sento no jardim, em bancos que construí com minhas próprias mãos, sinto o gosto mágico de arroz com tomate.

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Esse bando de palavras
que escolhi para meus pares
às vezes brinca de roda
às vezes afunda em mares

Esse bando de palavras
que conquisto sem alarde
às vezes porta bandeiras
às vezes dorme em esteiras

Que ao juntar tais criaturas
em espaço tão restrito
não se abale as estruturas

daquilo que eu acredito
e só me leve às alturas
nas asas do que foi dito

domingo, 8 de setembro de 2013

Hoje o Motta nos brinda com uma bela declaração de amor. Junto à riqueza interior da Val e à leveza lírica do Eduardo, teremos um domingo perfeito. São pérolas que nos lembram, talvez, que nada é o que parece ser...

De Val Saab


é quando o mundo para.


de vez em quando, é isto que acontece

ninguém sabe
ninguém percebe
ninguém vê.

só você. só você sabe.

só você sente.
sente que o tempo para
sente que o tempo é seu
sente que o mundo
move dentro de você
em outro tempo,
outra história, outro ritmo, outra razão.

não diga que a história não vale a pena.

se vale se
entregar e ter
por pouco que seja
o mundo em tuas mãos.

De Eduardo Magrão Menezes


ALADA PAIXÃO
Vem... linda borboleta,
Desenhando em tua vinda,
No teu alegre vôo,
Coloridos corações
Em piruetas sutis,
Escrevendo ao léu
Poemas de amor!

Vem beijar teu poeta

Disfarçado em flor
Que, por te amar,
Virou amor-perfeito
No jardim do amor!

Vem mulher alada,

Borboleta da paixão,
Vem ser fada safada
No jardim do meu colchão!

Vem ser demência,

Na loucura da paixão,
De um poeta enlouquecido,
Que dá asas ao amor...
Pra voar seu coração!


De Paulo Motta

Despertei distraído, ainda com a poeira dos sonhos na pele e a nítida sensação do calor do teu corpo no algodão do lençol. Continuo de olhos fechados, guardando as lembranças que vieram no sonho; teu ressonar suave, teus ruídos noturnos voltando pra cama e procurando se aninhar embaixo das cobertas no frio de julho. Inesquecíveis manhãs de domingo, em que te acomodava de um jeito especial no meu colo, pedindo um afago, um carinho delicado, tão frequente em nossos braços e abraços. Nunca precisaste falar, somente me fitar com teus enormes e redondos olhos negros. Às vezes eu acordava com o roçar dos teus pelos ou do teu bigode em minha nuca! Meu coração sente a tua falta. Lembro quando Maria Cristina e eu te buscamos na casa de um amigo, que havia te resgatado de um bueiro, uma gatinha preta com manchas amarelas, uma gracinha, a Pôka! Tão logo me recupere vou vê-la, minha gata Pôka danada amada pulguenta feroz! Maria Cristina cuida dela como se fosse uma princesa! De tarde leva no balê e às quintas, no inglês. Bela manhã, ensolarada e fria, bem como eu gosto, hoje, queridos amiguinhos e amiguinhas. Domingo recebi a visita do meu amigo Claudio Mariano, o Tinga, e sua esposa Adelina, que me relembraram engraçadas histórias dos tempo da rotativa, lá na Zero Hora. Naquela época a gente entrava no jornal e não sabia quando sairia. Sério, rapaiz! Em 82, quando veio o Papa Johannus Paulus II, ficamos três dias lá dentro. Claro, fazendo churrasco e tomando cachaça. E trabalhando. E o jornal ia pra rua, creiam-me, ó homens de pouca fé. Já de manhã cedo levei uma ralhada da enfermeira, só porque escrevi com pincel atômico vermelho, no meu babeiro - eu tenho um babeiro, senão é um desastre - "Sou da Mamãe!. Ela falou que se alguém chegasse pensaria que aqui é um manicômio e que eu não tinha maturidade, pareço uma criança grande, preciso mudar essa postura infantil e aíaspessoasfalamquetunaoipretsaatenaçastobbrrr. Claro, claro, entendo, sei sim! Tá bom. Eu desenvolvi um dispositivo que, se o assunto não me agrada, eu ligo esse negócio e saio do ar, sacou? Fico olhando, compenetrado, para a criatura que vocifera ou que me amola com papo chato, como se estivesse profundamente interessado no que o incauto fala. Depois, é só sacudir a cabeça e dizer: "Claro, é isso, com certeza - o "com certeza" não pode faltar - vou modificar, etc.", e nunca diga nada que possa fazer a pessoa voltar ao ponto de partida, o que seria uma hecatombe. Nesses momentos o silêncio é precioso. Meus amigos e amigas, meus parceiros diários, obrigado pelo carinho de vocês e tenham um bom almoço. Um alá minuta mal-passado, ou amina luta bem-passado. Beijinhos e abracinhos.

sábado, 7 de setembro de 2013

Berrantes de guerra
não merecem meu pulsar

Talvez a inundação de corpos destroçados
numa torrente de sangue
e lágrimas
Devastação e lágrimas

Não é o mal
com a sedução endiabrada
de suas vozes
que me clama
Mas as conseqüências arrasadoras
de seu ato

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Gatinho e cachorro
na casa que fiz
alcançam socorro
se acordo infeliz 
          Que adianta socorro quando acordo surda

A flor que amanhece
brilhando no céu
no amor que padece
é toque de véu
          Que faço das cores se amanheço gris

Pudesse quem sabe
salvar o soneto
se tal como um sabre
          É a dor em tentativa absurda

a dor não cortasse
as bases do teto
que ao frio me abrigasse
          Que rasga o soneto como eu sempre quis

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

A REPARAÇÃO 
Se quando chegou ela fez história, por carregar a lagartixa em seu bolso, a camisa Volta ao Mundo também teve seu lado negro em minha história. Era um dia festivo, em comemoração aos meus 10 anos, ritual de passagem da infância à pré-adolescência e sua rebeldia incipiente. Amigos chegaram antes das visitas mais formais. Não lembro dos participantes, mas o certo é que formei um bando e seduzi-os a andar por cima dos muros, de nossa casa até a quadra seguinte, analisando pátios, bichos, espionando histórias. Estávamos todos lindos, arrumadinhos pra uma festa e, logo logo, nossas ferozes pernas se equilibravam sobre trapézios improvisados a desbravar o mundo. Numa das casas investigadas morava uma velhinha, a matriarca, já com Alzheimer (caduca, dizíamos então) e apavorou-se quando passamos a primeira vez. Estava de preto, lembro, e quando voltamos, nos esperava com um enorme balde cheio de água de esgoto, graxeira, ou qualquer dessas coisas bem fedorentas. Atirou, com uma pontaria inesperada para sua condição, mirando a chefe do bando, e acertou-me em cheio, respingando em todo o pessoal que vinha entusiasticamente atrás. Alguém pode imaginar o pavor que foi entrar em casa daquele jeito? O cheiro antecipou-se ao silêncio em que vínhamos e uma guarnição de adultos indignados já nos esperava na porta da cozinha. Antes do "não foi isso que vocês estão pensando!", tocam a campainha da frente e entra minha madrinha, querida Lilia Ferreira, com a sonhada camisa Volta ao Mundo. Deu de cara comigo e ao lhe confessar o que havia acontecido, marcou-me com um castigo pior do que qualquer palavra ríspida das muitas que escutei naquele dia: "pensei que já eras mocinha, por isso trouxe a Volta ao Mundo, mas já vi que me enganei, então vou levá-la de volta!"
Depois dos devidos banhos tomados, o aniversário continuou, mas estava estragado pela vergonha. No outro dia, em conversa com o pai, foi-me aconselhado falar com a velhinha, pois eu a havia assustado e ofereceu-se para ir junto, amoroso como era. Bati na porta, expliquei a situação, e me foi permitido pedir desculpas, mesmo que ela não lembrasse mais do acontecido. Mas eu lembrava e, reparando o erro, desfez-se um pouco a nódoa do mau-feito. Uma longa semana depois, pude receber minha camisa Volta ao Mundo e dei, talvez, o primeiro passo para a maturidade, num tempo em que a formação de quadrilha era punida com rigor e, mais que tudo, de uma forma reparadora.

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Eis que enfim setembro rompe em círculos
numa escandalosa cascata de cores
No ar uma estrangeira sensação do bem
burlando esquisitices do velho coração

O céu com seus trigais
amanhece em plataformas douradas
ao alcance das mãos
Suspiros são bem-vindos
alimentados em orquestra de grilos

Todos os açoites ficaram pra trás
A elegia das sombras quedou-se
em labirintos obscuros
e o orgulho da aurora restaurada
é visível no sol deslizante

Oh primavera das consolações
quem não se lembra de ti
quem não clama por ti para sair de grutas

Já agonizei
antes dos teus trigais
Afoguei suplício em taças
prometidas aos deuses
por absurdas e vis revelações

Oh primavera de minhas repetidas esperanças
sela-me os lábios de antigos venenos
salva-me o corpo de honras perdidas
Deixa-me nascer como rainha
e que as fendas do peito
se empapem gostosas com os raios de sol

terça-feira, 3 de setembro de 2013

Tento te buscar
atrás dos teus silêncios
e me assusto
com a imensidão do que compreendo

O silêncio transborda no cálice
antes da porta fechada
A última tragada
O último gole de cerveja
A extrema-unção de uma vida extraviada

O silêncio é a enciclopédia
das verdades ocultas

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

A JANELA
Quando fiz 10 anos, ganhei uma camisa Volta ao Mundo. Quem testemunhou os anos sessenta, com sua revolução comportamental, artística e política, sabe que a moda, como reflexo, também acompanhava essa explosão, que mudou de forma radical os costumes. A minissaia, a moda unissex, os tecidos sintéticos e, claro, a camisa Volta ao Mundo, de uma espécie de nylon, sonho de consumo de qualquer criança e jovem da época. Tinha gola e um bolsinho na frente, quase sempre de cor clarinha, uma graça. A minha era verde água. Naquele ano fomos para a praia e levei-a principalmente para os domingos, porque era "de sair". Velhos shorts e roupas menos delicadas, que agüentassem o tranco daqueles dois meses de aventuras, eram a vestimenta principal. Uma das brincadeiras mais emocionantes era subir as dunas, que naquele tempo eram enormes e se chamavam cômoros, e, de lá, rolar até embaixo, pra depois subir de novo e rolar e subir e rolar, até que o sol se pusesse no horizonte. Numa das subidas, achei a Tixinha. Era uma lagartixa bem branquinha, camuflada para a areia, que terminou com minha brincadeira daquele dia, pois instantaneamente a adotei e levei-a para seu novo lar. Dormia numa caixinha, na cozinha, e adaptou-se logo ao cardápio de insetos que eu lhe dava. De dia, passeava comigo por Arroio Teixeira, no bolsinho da Volta ao Mundo, com as patinhas de cima apoiadas na aba do bolso, como se ele fosse uma janela. Olhava de um lado pra outro e fazíamos sucesso em nossas caminhadas. Era a alemoazinha, filha do seu Lauro, com sua insólita lagartixa de estimação. Quando as férias acabaram, precisava de um lugar de transporte para a Tixinha. Encontrei uma caixa de manteiga (que na época vinha em embalagem de papelão) e junto à família e tralhas restantes, começamos a longa viagem. No meio do percurso, resolvi dar uma espiada na filha. Horror! Pânico total! A Tixinha tinha fugido. Ajoelhei-me no chão do ônibus a procurar, nessas alturas já aos berros, tirando o sossego dos companheiros de viagem. Todo mundo resolveu ajudar - pra se ver livre de minha histeria, claro - e era um tumulto tão grande, que o motorista resolveu dar uma parada no acostamento, até resolver questão tão delicada. Não lembro quem achou, mas de repente foi um griteiro, achei, achei, e a Tixinha voltou pra caixa, podendo a viagem prosseguir em paz. Em Cachoeira, no mesmo esquema entre caixote e passeio, viveu comigo vários meses, até que um dia sumiu, não sei se por obra dos gatos ou das galinhas da casa. Se foi, e me partiu o coração, como a cada bichinho que se ia, mas fez da camisa Volta ao Mundo muito mais que um simples adereço de moda. Transformou-a, a cada vez que eu a vestia, numa janela para o mundo.