quinta-feira, 5 de setembro de 2013

A REPARAÇÃO 
Se quando chegou ela fez história, por carregar a lagartixa em seu bolso, a camisa Volta ao Mundo também teve seu lado negro em minha história. Era um dia festivo, em comemoração aos meus 10 anos, ritual de passagem da infância à pré-adolescência e sua rebeldia incipiente. Amigos chegaram antes das visitas mais formais. Não lembro dos participantes, mas o certo é que formei um bando e seduzi-os a andar por cima dos muros, de nossa casa até a quadra seguinte, analisando pátios, bichos, espionando histórias. Estávamos todos lindos, arrumadinhos pra uma festa e, logo logo, nossas ferozes pernas se equilibravam sobre trapézios improvisados a desbravar o mundo. Numa das casas investigadas morava uma velhinha, a matriarca, já com Alzheimer (caduca, dizíamos então) e apavorou-se quando passamos a primeira vez. Estava de preto, lembro, e quando voltamos, nos esperava com um enorme balde cheio de água de esgoto, graxeira, ou qualquer dessas coisas bem fedorentas. Atirou, com uma pontaria inesperada para sua condição, mirando a chefe do bando, e acertou-me em cheio, respingando em todo o pessoal que vinha entusiasticamente atrás. Alguém pode imaginar o pavor que foi entrar em casa daquele jeito? O cheiro antecipou-se ao silêncio em que vínhamos e uma guarnição de adultos indignados já nos esperava na porta da cozinha. Antes do "não foi isso que vocês estão pensando!", tocam a campainha da frente e entra minha madrinha, querida Lilia Ferreira, com a sonhada camisa Volta ao Mundo. Deu de cara comigo e ao lhe confessar o que havia acontecido, marcou-me com um castigo pior do que qualquer palavra ríspida das muitas que escutei naquele dia: "pensei que já eras mocinha, por isso trouxe a Volta ao Mundo, mas já vi que me enganei, então vou levá-la de volta!"
Depois dos devidos banhos tomados, o aniversário continuou, mas estava estragado pela vergonha. No outro dia, em conversa com o pai, foi-me aconselhado falar com a velhinha, pois eu a havia assustado e ofereceu-se para ir junto, amoroso como era. Bati na porta, expliquei a situação, e me foi permitido pedir desculpas, mesmo que ela não lembrasse mais do acontecido. Mas eu lembrava e, reparando o erro, desfez-se um pouco a nódoa do mau-feito. Uma longa semana depois, pude receber minha camisa Volta ao Mundo e dei, talvez, o primeiro passo para a maturidade, num tempo em que a formação de quadrilha era punida com rigor e, mais que tudo, de uma forma reparadora.

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