terça-feira, 24 de setembro de 2013

O ESTRANGEIRO
Passar alguns dias em Floripa lembrou-me os dois anos em que morei lá, no início da década de 90. Mudei-me com mala, cuia e bicharada, para montar um camping na praia de Armação do Pântano do Sul, na ilusão de que a sensação de férias permanente ia vencer todas as dificuldades e a constante ebulição de minhas emoções. Mas em 91 ainda venciam as promessas e meu primeiro aniversário lá, em outubro, foi inesquecível. A aventura começou cedo, com uma caminhada até a Praia da Solidão, que naquela época era ligada ao Pântano do Sul por uma trilha. O dia estava lindo e o chão forrado de folhas formava um tecido xadrez. Acima o arvoredo quase intocado e à frente o mar, sereno mar a retocar meus desejos com o melhor presságio. A nota triste era a quantidade de pingüins mortos à beira da praia. Mas de repente, um quase imperceptível movimento acima de meu acampamento e lá estava um pingüim com um leve tremor, como se a vida demorasse em se despedir. Tinha um enorme machucado nas costas, mas respirava, e o meu passeio terminou ali. Voltei pra casa com a cesta de piquenique intocada, mas decidida a trancar as forças restantes em seu corpo até que pudesse ser ajudado. Mas não havia ninguém para ajudar. Liguei para o Ibama, para as secretarias do meio ambiente da Prefeitura e do Estado, para o correspondente catarinense ao Ceclimar, e nada. Ninguém estava disponível. O veterinário perto levou medo, então resolvi usar toda a minha experiência com meus bichos. Dei anti-inflamatório, antibiótico, limpava o ferimento com soro e colocava rifocina. Para alimentá-lo, o sistema GA (goela abaixo): soro caseiro e peixe passado no liqüidificador, bem aguado, várias vezes por dia. Uma semana depois ele acordou e levou outra para ficar em pé. Nessas alturas eu já havia feito amizade com os pescadores e ia até a praia esperá-los pelas seis horas da manhã, de onde vinha lotada de peixinhos para o cardápio do pingüim. 
Mas Floripa começou a arder de calor e precisei tomar medidas extremas. Desocupei o freezer e coloquei-o a morar lá. Ligava e desligava e deixava a porta aberta para que ele pudesse sair quando quisesse. Quando não estava dormindo - no freezer - ele seguia meus passos pelo terreno como um pintinho em busca da mãe. Era um espetáculo à parte vê-lo sair de sua casa e ficar de bico aberto esperando os peixinhos que, rapidamente, desapareciam de sua boca. Ficou alguns meses comigo, até crescer um pouco e fortalecer-se para enfrentar as correntes marítimas. E chegou o triste dia em que meus amigos pescadores puderam levá-lo até alto mar, num futuro incerto, mas seu de direito.
O freezer voltou ao seu papel de gelar bebidas, mas já não era a mesma máquina. Eram paredes protetoras que albergaram uma existência quase encerrada e não a deixaram ir. Assim somos nós, quando nos perdemos como estrangeiros no meio da vida. Um simples aceno basta para que se vislumbre, mais uma vez, a luz encantada do caminho de casa.

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