A SOMBRA
Cada vez que avançam os ponteiros da balança, em seu delirante desafio, sinto saudades daquela menina magricela que habitou meu corpo nos primeiros anos. Comer era a obrigação mais enfadonha do dia e eu a cumpria com o descaso de uma relação já desgastada. Com o tempo fui adquirindo uma habilidade impressionante em remexer a comida no prato, amontoando porções aos montinhos, que davam a impressão de espaços vazios. Um ou outro pedaço de carne mastigado e estava feita a ludibriante cena. Por algum tempo essa solução livrou-me do tormento, mas logo a pressão recomeçou.
Um dia, no centro da mesa, como iguaria principal, estava um vidro de óleo de fígado de bacalhau. O pai, antes que as perguntas viessem em bombardeio, começou a apresentar as drásticas resoluções tomadas pelos adultos, na calada da noite anterior. A partir daquele dia ninguém mais precisava comer, se não quisesse. Liberdade total de escolha! Bastava que se optasse por uma colherada daquele vidro mágico, com seus nutrientes essenciais, e tínhamos a liberdade do prato vazio. Pareceu-me tão pequeno o preço a pagar que, na mesma hora, agarrei-me à esperança de salvação. A colherada veio ao encontro da boca escancarada e, assim que encharcou-me o paladar, voltou como um foguete por cima do mundo e das pessoas em volta, seu gosto horroroso temperando o almoço do dia. Quem já tomou óleo de fígado de bacalhau sabe o gosto insuportável que tem. Pois o sonho de substituir a comida terminou no instante em que o provei, num golpe de mestre do pai e da Dida. A partir de então, as refeições eram consumidas com uma aplicação exemplar, sempre observadas em silêncio pelo vidro fatídico.
Penso que foi esse dia que acordou a balança. Comecei a comer, e da abrigação passar ao prazer foi um passo. A adolescência descobriu os lanches, os salgadinhos, o álcool e, até que eu aprendesse a equilibrar tudo isso, a vida atravessou um longo curso. E os quilos a mais, como uma sombra nefasta, passaram os anos caminhando insistentes ao meu lado.
Nenhum comentário:
Postar um comentário