domingo, 23 de fevereiro de 2014

A LUZ
Quando eu tinha vinte e poucos anos, meu coração parou de bater. Vinha atravessando alguns problemas neurológicos e o médico pediu uma angiografia cerebral para um melhor diagnóstico. Era um exame invasivo, com o uso de contrastes através de um cateter introduzido na carótida. Fui avisada de algum risco, mas nunca pensei no que isso significava até tudo acontecer.
Deitada em submissão completa, anestesia local com algum tipo de sedação leve, flutuava em nuvens embriagantes, falava confidências desconexas, enquanto agulhas, êmbolos, líquidos de todas as cores e mãos, muitas mãos flutuavam ao meu redor.
De repente, tudo começou a apitar. "Fibrilando, parada, parada cardíaca"... Vozes agitadas que me arrancaram as asas e me jogaram, de repente alerta, numa cama gelada. Muitos em volta, gente surgindo de não sei onde, estudantes de plantão tentando manusear máquinas e seringas, assustados com a responsabilidade. O médico, o neurocirurgião de plantão havia voltado pra casa! Os garotos a se revezarem em massagens cardíacas, que mais me pareciam socos. Doía a violência e eu queria afastá-los, mas não conseguia mandá-los parar. A voz, que antes havia sido tão eficiente em eloquentes discursos, agora negava-se a reclamar do desconforto. Não conseguia mexer um músculo, não conseguia falar, mas a mente escancarada para as sensações absorvia o tumulto ao redor. Era absolutamente incrível ouvi-los dizer que estavam me perdendo, quando uma lucidez arrebatadora era tudo que me restava. 
Não sei quantos minutos transcorreram mas foram vários, pois muita atividade se passou ao redor. E como música, de repente as máquinas voltaram ao seu sobe e desce. A vida, com absoluto poder, havia recomeçado a se movimentar. 
No dia seguinte, ao intimar o neuro-chefe, ele negou que tivesse saído da sala, embora não pudesse explicar por que meu peito estava todo roxo. Soube depois que fez uma reunião para saber quem dos presentes havia me contado a história.
Nunca mais falei no assunto, temendo a descrença. Anos depois, quando começaram a ser publicadas as experiências de quase-morte, continuei com esse segredo estocado entre tantos outros. Minha fajuta quase-morte era tão frágil de experiências que me envergonhava, como se quisesse ser incluída à força, no grupo dos dez mais. Não saí do corpo inerte, não vi as luzes aumentarem, não andei em túneis, não falei com meus queridos que se foram. Só fiquei ali, parada, deixando que lutassem heroicamente por minha vida, enquanto o cérebro retomava o rumo de uma consciência até então romântica sobre meu próprio corpo.
Seja por explicações espirituais, seja por explicações científicas, hoje se sabe que isso existe de várias formas, inclusive parecidas com a que vivi. Mas até hoje, passados quase quarenta anos, nunca estive com a vida tão nítida, como quando meu coração parou de bater. O cérebro deixou de ser um estrangeiro num corpo feito até então apenas de sentimentos e provou sua majestade, enquanto luz suprema. A partir daí, quem sabe, pude encetar um caminho desenhado em mente e coração, mesmo que para isso tenha precisado morrer ainda mais mil vezes, antes de finalmente entender quem sou.

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