domingo, 22 de dezembro de 2013


Dois belos textos sobre a alma desarrumada. Dois belos textos sobre a esperança de uma nova luz. Joice Bermann, com um belo poema e o Motta, que me comoveu muito em suas palavras "Que descuido o meu; abandonei-me, abandonei minha alma, deixei de lado o cuidado diário que minha casa precisa, corri o risco de me tornar mofado, cinzento, opaco."

De Joice Bermann 
Rasgue-se
O peito,
Arranque-se
As dores,
Os medos,
Os horrores.

E do rasgo
Fluam
Doces
Sonhos,
Esperança,
Acalantos,
Amores,
Cores.


De Paulo Motta
VAZIOS
Eu costumava chegar no jornal, lá em Caxias, cedo da manhã e passava pela cabine da telefonista, onde ficava conversando um pouco antes de ir para a minha sala.
Numa dessas vezes ela me olhou e disse: "Tudo bem, Motta? Parece que estás com a alma desarrumada!". Seus olhos leram a minha alma como nunca ninguém havia feito antes. Aquela moça, uma ilustre desconhecida, enxergou pela fresta da persiana da minha casa fechada e viu a mesa da sala com restos de um jantar inacabado, como se os convidados tivessem sido tragados pela noite escura sem terminar a refeição.
Alma desarrumada, alma desarrumada; demorei pra me recobrar da surpresa, como se tivesse sido flagrado cometendo algum delito, sabe? Colei na boca um sorriso inoportuno e continuei mergulhado na minha casa desarrumada, vazia mas bagunçada, quartos empoeirados com pouca luz e agora não dá pra ajeitar tudo, nem vou receber visitas, mas preciso dar um jeito nisso.
Se a menina não me avisa ficaria tudo nesse abandono que só vi agora.
Aos poucos fui trocando os lençóis, sacudindo os tapetes, esvaziando as latas descascadas das prateleiras e jogando um montão de remorsos e inseguranças no forno eterno do esquecimento, no lixo.
Tenho o péssimo hábito de colecionar saudades que, enfileiradas na janela, saltam no meu pescoço se, por descuido, passo muito perto. Ah, as saudades! Como me livrar delas sem que percebam? Fizemos um pacto, então: só apareçam quando chamadas, certo? Nem acreditei que concordaram, as danadinhas!
Abri as janelas, iluminando a cama enorme e nem lembrava da cadeira de balanço com encosto de vime ali no canto, que coisa!
Que descuido o meu; abandonei-me, abandonei minha alma, deixei de lado o cuidado diário que minha casa precisa, corri o risco de me tornar mofado, cinzento, opaco.
A partir disso procuro manter as coisas em ordem e limpas pra qualquer visita repentina - essas coisas acontecem quando tu estás de ressaca e com a barba por fazer - e sei que por mais que eu me prepare, as visitas à minha casa/alma são sempre inesperadas. Senão não teria graça, não é?
Boa noite.

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