quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

A VAGA
Num dia de calor assim, ensolarado assim, eu consegui me atropelar. Essa façanha inconcebível provocou uma reação em cadeia e a quadra inteira recheou-se de feitos improváveis.
Tudo começou em Capão Novo, às 8 horas da manhã, num sábado de verão. Sempre gostei de ir ao supermercado cedinho, com o carro lotado de garrafas de cerveja - as latinhas ainda eram muito caras -, antes do movimento e da tradicional romaria à beira do mar. Enquanto organizava a lista tive a infeliz ideia de ligar o carro estacionado à frente de casa, para ir "esquentando", num tempo em que os primeiros motores a álcool sofriam com a ressaca noturna e nos negavam seu vigor. Era um Passat azul-petróleo, estalando de novo, e eu me sentei de lado no banco do motorista, com as pernas pra fora, pois pretendia ainda voltar pra dentro de casa. Sentei, puxei o afogador até a frente pra apressar o aquecimento...e virei a chave.
Num instante, num absoluto e miserável instante, o carro adquiriu vida própria pois, por um absurdo ato de patetice, o motor tinha ficado engatado - de ré - no dia anterior. Assim que ele corcoveou pra trás, derrubou-me do banco e fiquei presa pela porta, sendo arrastada por alguns segundos, antes que ele decidisse sua trajetória por cima de carros, postes, placas e paredes do condomínio. Eu fiquei ali atirada, toda esfolada e com o pé quebrado, literalmente na sarjeta, vendo minhas economias voarem ladeira abaixo. O Passat, sem porta e sem os vidros, dobrado ao meio, foi vencido por um viga mais potente da quina do edifício. Mas deixou derrotados três carros, dois postes, a placa de mármore do condomínio e um enorme pedaço de parede. Sobreviveram, galhardamente, doze garrafas vazias de cerveja, que rolaram lomba abaixo, como se quisessem escapar de toda a responsabilidade pelo prejuízo.
Era cedo e, misericordiosamente, não havia ninguém na rua. As pessoas começaram a aparecer nas janelas atraídas pelos estrondos pavorosos. Eu ali, triste figura na sarjeta, escuto os gritos de um desconhecido, na sacada de uma vizinha cujo marido trabalhava até as 10h. "Meu carro, meu carro"! O carro dele era um dos avariados pelo Passat e tinha ficado bem amassado. Acontece que, para compartilhar a noite solitária da minha vizinha, ele havia surrupiado o carro de um cunhado, irmão da mulher dele. "Meu carro, meu carro! O que eu vou dizer pra o meu cunhado? O que eu vou dizer pra minha mulher?". Nisso chega a Brigada e tenta convencê-lo a registrar a ocorrência, para ter direito ao meu seguro, mas ele se nega. "Deixa assim, deixa assim". Ainda de camisa aberta, sem os sapatos, sem o cinto, entra no carro avariado, que mesmo assim não nega fogo, e escapa lomba abaixo. No mesmo instante em que ele passa batido pelas fujonas garrafas de cerveja, o marido chega e estaciona na mesma vaga onde ele havia estado. "O que houve, o que houve, aconteceu alguma coisa com a minha mulher?"

Nenhum comentário:

Postar um comentário