quarta-feira, 5 de março de 2014

A PARTITURA
O canto e seu poder absoluto é um ato de comunicação que nasceu antes mesmo da palavra. É emoção transmitida que viaja no ar, às vezes como um furacão, às vezes como se fosse uma aragem, uma lufada de vida, um arrepio.
Eu quis ser cantora desde a adolescência. Compunha músicas e as apresentava em festivais, com alguns bons resultados, a ponto de encorajar-me a vôos mais altos. Por volta dos 30 anos comecei aulas de violão e colocação da voz, pois havia decidido cantar profissionalmente. Como o professor ia até minha casa à noite em duas vezes na semana, as aulas renderam e comecei a tocar e soltar a voz sem medo e com um ritmo mais apurado.
Ele era um violonista famoso e decidiu lançar-me como cantora, acompanhando-me com seu maravilhoso violão num show com músicas do Tom Jobim. Ia ser no espaço IAB, lugar cult da época. Vinha para os ensaios cada vez mais frequentes, regados a uísque - devo confessar - como se a música precisasse do tilintar do gelo no copo como insólita harmonia.
"Sabiá", "Demais", "Janelas Abertas", "Eu sei que vou te amar" e tantas outras voavam sozinhas pela sala apertada, quando comecei a notar certos olhares de encanto, que logo dobravam a esquina quando eu tentava decifrá-los. Até que um dia, no meio de um emocionado "Se todos fossem iguais a você", o professor, meu maestro de plantão declarou-se. Dizia-se apaixonado sem volta, e de uísque em uísque, a eternidade de seu amor aumentava mais. "Não vamos misturar as coisas!" pra cá, "Essa não é bem minha praia" pra lá, tentei afugentar suas intenções que me afastariam do foco principal, minha suposta carreira.
Uns dias mais se passaram, até que ele bateu à minha porta com a mala debaixo do braço e a expressão atormentada de menino perdido. "Me separei da minha mulher!", "vou para um hotel, porque só penso em ti, amor da minha vida" e tantas dessas palavras que cada um de nós, em algum momento da vida, já esgotou. Repeti toda a minha ladainha de negativas mas ele trazia novos motivos para que eu o aceitasse e novos copos para que ambos bebêssemos. No meio da noite venceu-me no cansaço! Eu estava sozinha depois de dolorosa separação e, de alguma forma, tal grande amor ninava-me o ego, tão covardemente massacrado.
De manhã, o uísque e a estranheza ainda me toldando o sono, quando o escuto levantar-se apavorado "Fiquei aqui! Minha mulher vai me matar!"
Eu ainda não havia me refeito do espanto e ele já recolhia o violão e a mala que se abriu pela pressa, espalhando, em vez de suas roupas para o retiro permanente no hotel, umas duas ou três partituras, muito surradas, como surradas eram as cantadas de seu repertório.
Não preciso dizer que as aulas terminaram e que o show não saiu. Minha carreira acabou no momento em que a maleta espalhou suas deslavadas mentiras pelo chão. Mas, por mais incrível que pareça, não me importei. Tão irrisória sua intenção que levou consigo o encanto da música compartilhada. Mas a partitura esparramada aos meus pés (ah, a partitura!) era a da inesquecível "Retrato em Branco e Preto", cujos segredos eu ainda não conhecia, e que virou-me as costas entrando na escuridão de sua mala, afastando-se para sempre, enfeitiçada pelas mãos do galante impostor...

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