domingo, 26 de janeiro de 2014

A DESCOBERTA
Quando me aposentei pelos problemas dos olhos, caçaram minha carteira de motorista. Achei uma tremenda injustiça - com o carro - que há muito já andava sozinho, sem que eu precisasse demonstrar qualquer habilidade, visual ou motora.
Minha primeira conquista automotiva foi o Corcel I mais amarelo da cidade. A cor, que reluzia ao primeiro olhar, servia para tapar os quilos e quilos de massa branca dos buracos de ferrugem, que foram já reaparecendo antes do segundo ano. Mas naqueles primeiros dias brilhávamos ambos, ele por seu ouro e eu pela felicidade de ter conquistado os limites de um sonho, mais dourado do que o carro, e a sensação inusitada de fazer parte do mesmo lugar encantado de minha imaginação. Saíamos pela cidade a procurar conhecidos para que eu pudesse exibi-lo e, entre abanos e sorrisos, éramos chamados de "a clara e a gema"...
Num fim-de-semana de verão, resolvi visitar minha irmã e meu cunhado, que haviam comprado casa em Imbé, para apresentar o carro novo. Enquanto eu desbravava a freeway, com a emoção de uma pioneira, minha família e a de meu cunhado reunia-se para um churrasco festivo de sexta-feira à noite. Tinham um espaço grande no fundo do terreno, com churrasqueira, mesas e cadeiras e essa área de lazer era separada da casa por um belo pátio gramado. Quando cheguei, sentia-me como uma celebridade em sua limusine aberta, abanando para os mais ardorosos fãs. Entrei pelo corredor lateral até o pátio central buzinando meu exibicionismo e, num arroubo de entusiasmo, tirei as duas mãos do volante para os acenos iniciais. Daí pra frente começam, como que por encantamento, os feitos improváveis. O Corcel, não muito bom de geometria e alinhamento de rodas, virou um pouco forte demais e foi parar com todo o vigor no mais afastado canto do pátio. Ouve-se, no mesmo instante, um pavoroso barulho de implosão e o solo se abre aos meus pés. Bem ali, onde maciamente comecei a afundar, jazia agora insepulta a fossa da casa. Dejetos familiares e dejetos desconhecidos abraçaram meu carro, com um entusiasmo que ninguém havia demonstrado até então. As lajes que cobriam a fossa haviam quebrado com a força de meu ataque. 
Depois de um momento de choque inicial todos correram para acudir-me, mas o Corcel recusou-se a qualquer movimento. Quase a plantar bananeira, era um monumento brilhante no canto do pátio. Meu cunhado, seus primos, irmão, sobrinhos, todos os homens da casa afundaram naquele espaço incalculável, com alavancas e ferramentas, lutando contra a gravidade e contra as péssimas condições de trabalho. Não preciso dizer que o churrasco virou uma confusão. As mulheres tentando retardar o que já estava pronto e os homens, pobres eleitos, a tentar o quase-impossível salvamento.
Eu? Eu fiquei por solidariedade sentada à beira do buraco, com uma cerveja na mão, um pouco sem entender de onde vinham tantos olhares de esguelha, quando enfim eu havia descoberto onde ficava a perdida fossa da casa.

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