quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

A HERANÇA
Num dia de aniversário, ganhei o Crispim. Era um patinho minúsculo, com as penugens arrepiadas que acompanhavam o movimento dos ventos de outubro, sempre em busca de alguém para chamar de mãe. Primeiro grudou-se em meus movimentos, o que me obrigava a caminhar como se estivesse flanando, pois certamente onde o pé pretendia apoiar-se, lá estava aquela forma amarela antecipando meu passo. Depois de alguns dias mudou de lado e rendeu-se à curiosidade da Zizi, minha cachorra, que seguia nosso caminho com a persistência de um pesquisador. Ela, às vezes tão irritadiça, havia se apaixonado perdidamente pelo Crispim e sua profunda carência afetiva. Adotou-o como a um igual e o protegia dos gatos que rondavam excitados tão inusitado brinquedo. Ele dormia em sua barriga, como um filhote que havia terminado de mamar, e ela o lambia e catava bichinhos inexistentes, como a mais delicada mãe. Limpava suas sujeiras pela casa como faria se Crispim fosse um cãozinho aprendiz.
O tempo passou e o verão chegou, mas não lhes modificou o convívio. A penugem amarela foi-se transformando num mesclado de amarelo salpicado de cinza a evidenciar as belas asas pretas, que ainda se abriam quando corria pela casa atrás da Zizi. Transformou-se num enorme pato, um dos mais belos que já vi, mas nada conseguiu convencê-lo de que não era um filhotinho de cão. Continuava perseguindo a Zizi pela casa e ela, como boa mãe, tentava lhe dotar de um pouco de independência. Em vão. Quando a perdia, relembrava meus caminhos como vice-mãe e entoava seu chamado adolescente, sempre com as belas asas abertas, como se o afeto fosse impulsioná-lo a voar.
Quando chegou à idade adulta, adultos também ficaram seus excrementos, e eu já não contava com a ajuda da Zizi, embalada pelas emoções de seus próprios filhotes. Precisava levá-lo para viver no amplo pátio, mas doia pensar que ia sofrer pelo abandono. Foi então que decidi mostrar ao Crispim onde moravam as riquezas do fim do arco-íris. Comprei-lhe três patas adultas e larguei-o, completamente espantado, no meio de seu harém. E como eram desconhecidas as deusas da volúpia! Suas esposas, três megeras assumidas, guerreavam continuamente por seus favores, e o que era pra trazer alegria, transformou-se numa tortura incansável. Quando me via pelo pátio, pedia pra entrar, em busca de um pouco de sossego ou ia pra dentro da grande bacia que eu havia improvisado de laguinho.
Um ano depois, numa enchente que invadiu quase todas as casas em volta, precisei passar a noite recolhendo os bichos (gatos, cachorros, faisão, codornas, galinhas, coelhos) para a parte mais alta da casa, mas os patos haviam sumido. Pela manhã, no pátio transformado numa grande lagoa, aparece o Crispim, seguido por suas três mulheres, como se finalmente tivessem voltado pra casa. A partir de então, transformou-se no majestoso pato que era. Colocou ordem em sua casa e assumiu definitivamente seu lugar, como se aquele lago improvisado tivesse trazido de volta a herança esquecida.
Não durou muitos anos o Crispim. Foi-se num dia escaldante como hoje, de calor, de prazer ou de saudades daquele lugar do passado, onde dormia aconchegado aos pelos fartos de uma cachorra-mãe. Deixou-me suas furiosas viúvas que, sem os incansáveis favores sexuais a distraí-las, passaram suas vidas a atormentarem meus calcanhares. Mas deixou-me, mais que tudo, a certeza de que somos todos a herança e a circunstância, e é isso que nos faz essencialmente unos.

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