segunda-feira, 26 de agosto de 2013

A BANDEIRA
Dos anais de minha infância, as mais ricas memórias vêm dos dois meses em Arroio Teixeira, todo verão, onde tínhamos casa. Não acompanhei a compra e transformação, de meras quatro paredes, numa casa que abrigasse a família, que crescia entusiasticamente. Divisão de quartos, construção de camas, prateleiras com cortinas, mesas, bancos, tudo feito em casa, com a sabedoria gerada pela realização de um sonho. Contam-me que, como nasci em outubro e cheguei à casa aos três meses, foi-me feito um berço de um caixote de madeira, forrado de tecido, com babados. Buscavam água do mar em um balde e a deixavam esquentar ao sol, para meu banho diário. O que me lembro era a viagem interminável, com baldeação em Porto Alegre, de Cachoeira até a praia, pai, mãe, Dida, meus três irmãos e eu, a menorzinha, carregando claro que a menor sacola, mas contribuindo com o frete de toda a tralha que precisaríamos pelos dois meses que viriam. Naquele tempo não havia grande comércio em Arroio Teixeira. Comíamos de vianda, de um hotel próximo, e havia um armazém nas redondezas de nossa casa. Frutas vinham vender em casa, de cento. Quando chegávamos, era preciso suportar três dias sem luz, até que a companhia de energia viesse ligar os fios. A maior invenção da época, depois da água encanada, foi uma geringonça, pai do disjuntor, que ligava e desligava a luz, no início e no fim do veraneio. A água era outro parto. Já fui uma sortuda de pegar banheiro construído, mas a água era de poço e tínhamos de encher a caixa através de bombeadas vigorosas. O pai, homem sábio, fez um cálculo perfeito de quantas precisaria para termos a água do dia. Dividiu por faixas de idade - eu tinha de dar trinta! - e assim foi funcionando, até que cresci um pouco e meus irmãos deram em grito pela equiparação de funções, já que eu comia tanto ou mais que os outros. Essa foi a primeira manifestação política de que tenho notícia! Mas o que eu mais gostava, a despeito dos três dias sem luz, era a pintura da casa, na chegada, com cal e trincha, que naquele tempo se chamava brocha, sem termos vergonha de comprar no comércio. O trabalho era dividido segundo a capacitação de cada um: eu pintava o rodapé, meus irmãos por volta das janelas e os adultos se ocupavam, é claro, do resto das paredes. Lembro-me de um dia, em que estava ocupada em meu setor, e fui atingida por um prego em pé, provavelmente deixado cair pelo pai, que era o mais alto e o mais distraído. O prego fixou-se em minha cabeça, como uma bandeira, e marcou-me para sempre, se não pela gravidade do furo, mas pelo amor às coisas partilhadas, pela criatividade em inventar, de um nada, aquilo de que se precisa e pela emoção que o cheiro do mar, até hoje, me proporciona.

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