segunda-feira, 5 de agosto de 2013

A ESSÊNCIA


Era só uma roupa velha. Caindo aos pedaços, mesmo. Mas ao catar possíveis cobertas para os bichinhos de rua, por iniciativa de Elenara Nunes, achei essa calça de abrigo, tão usada, tão manchada, uma calça que me acompanhava há tanto tempo que, por sabê-la testemunha, era-me difícil relegá-la a trapo de limpeza. Minha muito usada calça azul, que saiu prá correr, andou de bici, cuidou do jardim, pintou, pintou muito, limpou com q-boa, fez mosaico, pintou mais um pouco e se recusava, depois de muitos anos de história, a se aposentar. Pois suas velhas pernas emendadas terão, em sua derradeira missão, a oportunidade de transmitir calor a algum animal abandonado.
Fiquei me lembrando de uma casa vizinha, recém-vendida, que os novos donos, no entusiasmo da renovação, reformaram tudo, colocaram na frente os móveis velhos e trouxeram os seus, mais modernos, com sua alma em cada coisa que ia inaugurando o novo sonho. Poucos meses antes, até falecer o antigo dono, sua família amava cada cantinho, cada móvel usado, cada arranhão na madeira que lembrava uma bicicleta da infância, cada lençol desbotado ainda a dedilhar a marcha nupcial. Mas para outra pessoa, a essência daquelas vidas não era visível. Pois todas as nossas pequenas maravilhas - com as histórias que revivem em nossa alma -, despidas de suas emoções, nada mais são do que desencantados trastes velhos.

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